POR – MÁRCIO THAMOS ESPECIAL PARA NEO MONDO
Caçadores, agricultores e navegadores aprenderam a interpretar a revolução dos corpos siderais como importante referência para o andamento de suas atividades.
O conhecimento sobre os astros desenvolveu-se de forma admirável, na Antiguidade mesopotâmica, desde o IV milênio a. C., entre caldeus, assírios e babilônios. Surge primeiro como possibilidade de perscrutar o futuro – a astrologia, cujos presságios se apuravam, de início, a partir da observação de fenômenos atmosféricos e meteorológicos simples, envolvendo principalmente corpos siderais proeminentes como o sol e a lua. Evolui, a seguir, para prognósticos mais complicados, que recorriam ao movimento dos planetas através das constelações do zodíaco, levando em conta o signo que presidia ao nascimento do consulente. Sua popularidade durante o período clássico em Roma é atestada pelo mais famoso poema de Horácio (65-8 a. C.), comumente conhecido pela expressão “carpe diem” que aparece no verso ?nal, a título de conselho urgente, pregando sabedoria e moderação diante das vicissitudes da vida, conforme traduzo:
Quer Júpiter te dê muitos invernos, quer seja o derradeiro este que agora fatiga o mar Tirreno contra as fragas, tem prudência: dilui o vinho e ajusta a esperança – que é longa – ao breve instante.
Foge o tempo invejoso enquanto falo: — Colhe o dia e não contes que haja outro.
O grande empenho matemático exigido pela astrologia na observação dos astros e suas relações interativas no céu levou aquelas civilizações desenvolvidas entre o Tigre e o Eufrates a consolidar pouco a pouco a astronomia, que se destacava da arte divinatória para adquirir autonomia em si mesma com o caráter de ciência.
Na mitologia clássica, os deuses primordiais foram imaginados com base nos elementos cósmicos. Hesíodo, poeta grego que ?oresceu provavelmente no VIII século a. C., narra em sua Teogonia a formação do mundo a partir do Caos, o in?nito abismo em que tudo desaparece.
Mas ao Caos sucede Gaia, a Mãe-Terra, e, logo, dela surge Urano, o Céu estrelado, para cobri-la inteiramente. Juntos, o Céu e a Terra tiveram muitos ?lhos e povoaram o mundo de entes fabulosos. Da geração dos Titãs, gigantes que ousaram contestar o poder dos deuses do Olimpo, nasceram o Sol, a Lua e a Aurora. A deusa da manhã, unida a Astreu, também ele ?lho de um Titã, deu à luz os Ventos cardeais Zé?ro, Bóreas e Noto, além dos Astros que cintilam no céu.
Várias lendas greco-romanas contam como surgiram as constelações. Órion, por exemplo, era um belo gigante que costumava caminhar entre as ondas do mar. Distinguia-se por suas habilidades na caça e pelo interesse que dedicava à astronomia. Diana, de um modo ou de outro, tirou-lhe a vida. Em uma versão do mito, desa?ada por Apolo a provar sua destreza no arco, mirando um ponto distante no horizonte das águas, a deusa, sem saber que se tratava de Órion, o acertou com uma ?echa fatal. Em outra variante, para se vingar do caçador formidável, que lhe teria atentado contra o pudor, Diana fez surgir da terra um escorpião que aplicou uma picada fulminante no calcanhar do atrevido. Em todo caso, a deusa apiedou-se do gigante, por quem talvez estivesse mesmo apaixonada, e, a?ita por tê-lo matado, conseguiu o assentimento de Júpiter, o senhor dos deuses, para colocá-lo entre os astros, formando assim a mais brilhante das constelações (as populares Três Marias compõem no céu o cintilante cinturão de Órion).
Nossa própria galáxia tem sua fábula mítica. Conta-se que, quando bebê, ao mamar no seio da rainha do Olimpo, Hércules sugou com tanta força que Juno o repeliu. O leite que então escorreu, deixando uma larga faixa luminosa no espaço, originou a Via-Láctea, caminho que leva ao palácio de Júpiter. Não obstante o mito, o ?lósofo grego Demócrito, nascido pela metade do século V a. C., já pensava na Via-Láctea como uma multidão de longínquas estrelas (o que, muito mais tarde, Galileu poderia constatar através de suas lentes).
Várias teorias e intuições de antigos sábios que se indagavam a respeito dos astros forneceram dados e ideias sugestivas para todo o desenvolvimento posterior da astronomia. E não há conhecimento que se possa aprofundar sem esse elo contínuo do saber que é transmitido de uma geração à outra através da história. O último grande astrônomo da Antiguidade, Cláudio Ptolomeu, foi um egípcio que viveu em Alexandria e escreveu em grego, já no II século d. C., à época dos imperadores romanos Adriano e Antonino Pio. Sua obra Sintaxe matemática (ou Grande composição), em treze volumes, sintetizava todo o saber astronômico de seu tempo, anunciava novas descobertas e aperfeiçoava teorias anteriores. Traduzida para o árabe, ?cou conhecida em todo o mundo pelo nome de Almagesto, “a grande obra”, e tornou-se referência fundamental por mais de mil anos. Ptolomeu manteve o tradicional modelo que via a Terra ?xa no espaço, com a lua, o sol e os planetas girando em torno dela. Mas a hipótese do sistema heliocêntrico já havia sido formulada, no século III a. C., por Aristarco de Samos, e muito antes ainda, no início do século VI, o matemático e astrônomo indiano Aryabhata I já se opunha à opinião de que a Terra fosse o centro do universo (quando o próprio Einstein dizia que a imaginação é mais importante do que o conhecimento, devia pensar em exemplos como esse).
Ao se perguntar sobre a natureza e a origem do universo, a astronomia atualiza continuamente questões primordiais que em todos os tempos inquietaram a mente e o coração dos mais variados tipos de pensadores e artistas: quem somos, de onde viemos, por que estamos aqui, para onde vamos? As respostas, sempre insu?cientes, nos impondo a dúvida mítica e constante, são o estímulo para novas e mais aprofundadas re?exões a respeito de nossa própria existência. Desse modo, apesar do extraordinário avanço cientí?co que conquistou através dos séculos, a astronomia consegue manter seu interesse poético e ?losó?co. Preservado naturalmente do mero utilitarismo tecnológico, o fazer do astrônomo se caracteriza bem por aquela mesma opinião do Pequeno Príncipe sobre o incessante trabalho do acendedor de lampiões que mantinha um minúsculo planeta piscando no espaço: “É verdadeiramente útil porque é bonito”.
*Doutor em Estudos Literários. Professor de Língua e Literatura Latinas junto ao Departamento de Linguística da UNESP-FCL/CAr, credenciado no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da mesma instituição. Coordenador do Grupo de Pesquisa LINCEU – Visões da Antiguidade Clássica.
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