POR – MÁRCIO THAMOS
A língua é um dos mais importantes fatores de coesão nacional.
A língua materna de um povo é um patrimônio imaterial de valor inestimável. A cultura geral de uma sociedade (tradições, costumes, religião, saberes, modos de fazer, formas de expressão, valores éticos, políticos, etc.) se transmite, se absorve e se transforma através da linguagem. A cultura é o elemento definidor do homem como ser no mundo, seja qual for o estágio de civilização que se considere, pois qualquer definição de cultura pressupõe a sociedade humana. Língua e sociedade estão assim, desde sempre, intrinsecamente ligadas. E não se trata de exagero quando se diz que uma língua tem o poder de moldar ou informar a visão de mundo de seus falantes, conferindo identidade própria ao país onde é fluente. Hannah Arendt conta que, depois da guerra hitlerista, quando voltou à Alemanha pela primeira vez (após um longo exílio motivado pela perseguição nazista aos judeus), sentiu um prazer indescritível ao ouvir sua língua materna falada naturalmente pelo povo nas ruas. A filósofa política, que sempre se recusou a perder sua própria língua, considera que “há uma diferença incrível entre a língua materna e qualquer outra língua”. E para ela, isso se resume de uma maneira simples, como explica: “sei de cor, em alemão, um bom número de poemas alemães, que de algum modo estão presentes no mais fundo de minha memória”.
A língua falada num país é certamente o fator mais importante de coesão nacional. Desde a antiguidade, as nações dominadoras tratavam de impor seu idioma como signo de supremacia cultural aos povos colonizados. E aos próprios romanos, Cícero, com certo pedantismo retórico, ensinava: non enim tam praeclarum est scire latine quam turpe nescire (“nem é tão notável saber latim, mas não sabê-lo é vergonhoso”). Ainda assim, arruinou-se a língua do Lácio. Já não se fala mais o latim de Roma – a língua materna dos antigos romanos – há pelo menos mil e quinhentos anos. Desfeita a relação visceral entre a cultura e sua expressão maior, os “latins” falados desde então, a despeito da justificativa histórica que se lhes deva reconhecer, não são, na verdade, mais do que uma língua do pê de gente letrada, um código erudito e puramente intelectual. Após a fragmentação lingüística do império romano, ninguém mais pôde lembrar de cor canções da infância arraigadas naturalmente na memória – canções de ninar, talvez, entoadas com doçura pela voz da própria mãe.
Línguas também se perdem. E sem elas valores culturais e conhecimentos étnicos específicos tornam-se irrecuperáveis. Por isso a própria UNESCO mantém, desde 1993, o “livro vermelho das línguas em perigo de extinção”, projeto que procura coletar informação atualizada sobre línguas que correm risco de desaparecer e promove pesquisas que possam colaborar com a manutenção e perpetuação da diversidade lingüística no mundo, salvaguardando sempre a língua materna, em todos os níveis de educação. A garantia das condições socioambientais necessárias à produção, desenvolvimento e transmissão de bens culturais de natureza imaterial passa necessariamente pela preservação das línguas nacionais. Por isso, cada língua que se perde no mundo empobrece o patrimônio cultural comum construído ao longo dos séculos pela humanidade.
Parece significativo que no mesmo mês em que se comemora o dia das mães, tenhamos também reservado no calendário um dia para celebrar a língua nacional. Que a nossa boa e jovem língua portuguesa possa nos embalar amorosamente através das gerações!
* Doutor em Estudos Literários, Professor de Língua e Literatura Latinas junto ao Departamento de Lingüística da FCL-UNESP/CAr e Coordenador do Grupo de Pesquisa LINCEU – Visões da Antiguidade Clássica.