POR – *JOSÉ GRAZIANO DA SILVA / NEO MONDO
Chefe da FAO, José Graziano da Silva, lembra que a fome aumentou no mundo após décadas de sucessivas quedas, afetando atualmente 815 milhões de pessoas. O crescimento é resultado de uma combinação perigosa: conflitos armados e desequilíbrios climáticos
Seca na Etiópia em 2015 foi a pior em 30 anos, levando o país a uma crise alimentar que deixou milhares passando fome. Foto: UNICEF Etiópia / Tanya Bindra
Em 2016, depois de mais de uma década de sucessivos recuos que reduziram a população subalimentada do planeta, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) constatou uma inflexão ascendente.
No seu último relatório “O Estado da Segurança Alimentar e a Nutrição no Mundo”, a FAO contabilizou um acréscimo de quase 40 milhões de vidas capturadas pela engrenagem da fome, elevando-se o total global de 777 milhões (em 2015) para 815 milhões de pessoas (em 2016).
O rebote da fome no mundo não pode ficar sem resposta e a hora de construí-la não admite protelações. Esse jogo não terminou.
Ele está sendo jogado nesse momento em vários pontos do planeta, com resultados que se alteram a cada minuto. O saldo traduz o ocaso de milhões de vidas humanas.
A omissão diante de um retrocesso ainda reversível, a um custo ainda irrisório, seria descabida em qualquer circunstância.
Mais ainda agora, quando finalmente avolumam sinais de uma retomada econômica global.
A experiência ensina que um ciclo de alta da economia facilita, mas não corrige sozinho as perdas e danos da etapa negativa que o precedeu.
A qualificação do crescimento em desenvolvimento para toda a sociedade persiste como um apanágio das políticas públicas e da ação coordenada de instituições voltadas à cooperação internacional.
No entanto, o que se passa hoje é mais complicado do que simplesmente resgatar o que se perdeu.
A retomada em curso talvez não produza um novo e abrangente ciclo de expansão do emprego associado a vagas de qualidade, com ganhos reais de poder de compra por um longo período.
Ao declínio do emprego na década crítica iniciada em 2008, soma-se agora um inédito degrau de automação trazido pela quarta revolução industrial.
O conjunto maximizará a produtividade, mas também o desafio histórico de redistribuir a riqueza por ela gerada.
É nessa fronteira de múltiplas encruzilhadas que a FAO constrói um repto à inquietante recidiva da fome na atualidade.
Um bilhão de dólares em contribuições internacionais pode salvar 30 milhões de vidas em 26 países e reverter o núcleo duro da insegurança alimentar em nosso tempo. O apelo encerra múltiplas dimensões.
Se a cooperação internacional não for capaz disso, que chance terá a meta do desenvolvimento sustentável na equação do clima no século XXI, como previsto no Acordo de Paris? Que espaço restará à meta daí inseparável de zerar a fome e a pobreza extrema nos próximos doze anos, com base em novos padrões produtivos previstos nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável?
A agenda da FAO em 2018 está integralmente centrada na construção cooperativa das respostas a essas perguntas, que vão selar o destino do século XXI.
Não se trata apenas de acudir a emergência. As causas da fome precisam ser compreendidas para que se possa agir com a rapidez necessária no presente e prevenir réplicas no futuro.
A fome no século XXI deixou de ser um alvo estático. Há tempos não se traduz a fome por escassez de alimento, como foi até meados do século XX. Tampouco a insegurança alimentar atual decorre apenas das dificuldades de acesso dos pobres à abundância conquistada.
Guerras fratricidas, desequilíbrios climáticos recorrentes, vulnerabilidade agrícola e derivas populacionais combinam-se hoje em diferentes pontos do planeta para impulsionar a regressão detectada pela FAO em 2016.
Infelizmente, os dados preliminares que a FAO está coletando para 2017 apontam para um novo crescimento do número de pessoas com fome no mundo.
Conflitos intermináveis no Iraque, Sudão do Sul, na Síria e no Iêmen, assim como a escalada da violência na República Centro-Africana, no Congo e em Mianmar, tornaram evidente a correlação entre a ausência da paz e o desmanche de sistemas alimentares, com impactos irreversíveis na vida das populações locais e de seus meios de subsistência.
Consequências semelhantes acarretam acidentes climáticos extremos cada vez mais frequentes. Os furacões no Caribe, ou as secas devastadoras na África, mostram que o custo do desequilíbrio ambiental já está sendo pago pelos mais pobres.
Os recursos que a FAO busca junto à cooperação internacional tem o aval de uma bem-sucedida experiência em acudir e semear a resiliência justamente no flanco mais sensível à instabilidade formado pelas comunidades rurais.
Na Nigéria, Somália, Sudão do Sul e Iêmen, mais de 6 milhões de famílias receberam sementes, equipamentos, fertilizantes e capacitação para plantar e colher mesmo em condições adversas.
Outros 2 milhões de agricultores em situação de extrema vulnerabilidade tiveram acesso a recursos financeiros para evitar a venda de suas terras e animais, o que tornaria impossível a sua regeneração produtiva.
Parcerias com a FAO garantiram a vacinação de mais de 43 milhões de cabeças de bovinos e caprinos nesses países, além do abastecimento de água perene, sem o qual seria impraticável dar resiliência à economia comunitária.
A FAO tem experiências, estruturas e vínculos locais para dobrar a aposta nessas iniciativas e converter o repto em um duplo ganho.
De um lado, redimir a segurança alimentar de milhões de seres humanos elevando sua capacidade de produzir em sintonia com a natureza; de outro, provar a nós mesmos que o futuro sustentável continua a ser o nome da esperança no século XXI.