Foto – Ramilla Rodrigues/ICMBio.gov.br
POR – LETYCIA BOND (AGÊNCIA BRASIL) / NEO MONDO
Sobretudo para os jovens, projeto representa alternativa ao garimpo
A reabertura de visitas ao Parque Nacional do Pico da Neblina, no município de Santa Isabel do Rio Negro (AM), deve ocorrer em breve. Para o dia 15 de novembro, está prevista uma reunião entre representantes das comunidades indígenas que vivem na região e de órgãos governamentais e não governamentais, para discutir a data de reabertura.
No fim de setembro, o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Xavier, assinou a carta que aprova o Plano de Visitação Yaripo, como é chamado pelos indígenas o ponto mais elevado do Brasil, com 2.995 metros. As visitações foram proibidas em 2003, após recomendação do Ministério Público Federal (MPF) e determinação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), e foram cogitadas novamente há cinco anos.
Paras o MPF, as atividades na área de proteção ambiental provocavam impactos ambientais e violavam os direitos dos indígenas. Agências de turismo que atuavam na região foram criticadas por não instruir os turistas sobre os valores espirituais, culturais e ambientais associados ao local. Desta vez, os próprios yanomamis deverão conduzir os grupos de turistas.
De acordo com o documento que detalha o plano de visitação, para dar continuidade agora à recepção de turistas foram consultados 55 representantes de seis comunidades da região de Maturacá (AM), sendo a maioria deles jovens interessados em desenvolver atividades de ecoturismo. Um dos órgãos governamentais envolvidos no processo, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), ressalta que a reabertura representa uma alternativa ao garimpo de ouro, já que muitos indígenas passaram a trabalhar na área de mineração para garantir o sustento.
A presidente da Associação Yanomami do Rio Cauaburis e Afluentes (Ayrca), Floriza da Cruz Pinto, diz que conhece esses jovens ligados à extração mineral e que eles, de fato, manifestam vontade de deixar a função, por saber que geram impactos negativos em suas comunidades e à própria saúde. “Eles estão querendo trabalhar no projeto, fizeram uma escolha. Hoje em dia, entendem que o garimpo degrada a natureza, os igarapés que, na tradição, são também sagrados. Tudo tem dom. A mata tem dom, os bichos têm dom. Então, é uma escolha. Durante quatro anos, eles participaram [do processo de decisão] e acho que agora, com a abertura do turismo do parque, é uma escolha que fizemos para parar com o garimpo, porque a gente entende que garimpo e natureza não se unem”.
A expectativa é de que mais de 2,9 mil indígenas de seis comunidades da região sejam beneficiados, conforme cálculos da Ayrca. A entidade foi quem apresentou a proposta do projeto ao governo federal, juntamente com a Associação de Mulheres Indígenas Kumirayoma (Amyk). É também a Ayrca que irá definir a destinação dos recursos obtidos com as visitações.
Crianças yanomamis em Homoxi, em Roraima (Cmacauley/Wikimedia Commons)
Sobre os passeios
Os passeios de ecoturismo yanomami terão como público turistas de aventura, sobretudo os aficionados por montanhismo. A intenção é aliar essa modalidade de turismo ao etnoturismo, com o propósito de valorizar também a cultura indígena local.
A partir dos termos do plano de visitação, fica estabelecido que as expedições deverão ter, no máximo, dez visitantes, um guia e uma equipe de carregadores, cuja quantidade de membros dependerá do total de visitantes. Os carregadores ficarão responsáveis por transportar itens de alimentação e acampamento dos excursionistas.
Até atingir o topo da montanha, é percorrido um trajeto de oito dias, que exige bom preparo físico dos caminhantes. Além do trecho trilhado a pé, os expedicionários devem atravessar outra parte a bordo de um barco, por dois dias.
Segundo o coordenador-geral de Promoção ao Etnodesenvolvimento, Juan Felipe Negret Scalia, a regulamentação do turismo em terras indígenas foi feita em 2015. Ele explica que o plano de visitação é um instrumento que prepara os povos originários para “receber um estranho na própria casa”. “A maneira de regulamentar, por meio de uma instrução normativa, foi criando instrumentos de planejamento dessas atividades turísticas, no qual os indígenas nada mais fazem do que sentar e discutir uma série de salvaguardas que dizem respeito ao papel dos homens, das mulheres, das áreas que estão abertas à visitação e as que não estão. Muitas vezes, os indígenas podem ter áreas sagradas que podem ser visitadas e outras que não”, acrescenta..
Scalia afirma ainda que o governo somente elaborou uma normativa interna quando os indígenas sinalizaram o desejo de oferecer serviços de turismo. “A visitação parte somente das terras onde aqueles indígenas queiram fazer turismo. Ou seja, o Estado brasileiro e a Funai [Fundação Nacional do Índio], em momento nenhum, vão incentivar ou impor turismo onde indígenas não queiram”, lembra.
Além da Funai e do ICMBio, também foram consultados para o plano de visitação a Secretaria de Turismo do município de São Gabriel da Cachoeira (AM) e o Instituto Socioambiental (ISA). No documento, o Exército Brasileiro é mencionado como parceiro, ficando incumbido de oferecer formação em primeiros socorros para guias e carregadores e formação em manutenção de motores de popa para pilotos e proeiros, além de auxiliar na fiscalização do perímetro.
Povo indígena Yanomami (foto: Santa Rita Filmes)
Protagonismo de mulheres
Floriza da Cruz Pinto foi uma das primeiras mulheres a encarar o itinerário do Pico da Neblina, espaço negado a elas até 2016. Ela, porém, não pôde completar a rota, pois estaria menstruada e, segundo a crença de seu povo, ficava, por isso, impedida de seguir. “Era um sonho que eu tinha. Depois de tanto trabalho, ser uma das duas primeiras mulheres, mas, infelizmente, chegando ao topo, naquele lugar sagrado, uma noite antes, nossa senhora, que tristeza. Vou contar a verdade: eu chorei, porque não pude ir lá”, relata, emocionada.
A líder yanomami explica que, para seu povo, o monte é considerado sagrado e poderoso e abrigadouro de espíritos sublimes e que eles poderiam se zangar com ela, infligindo severos castigos, que poderiam implicar sua morte ou a de pessoas que a acompanhavam na subida. Desse modo, quem representou as mulheres da Amyk foi sua companheira de luta, Maria. “É a casa dos espíritos. Depois da morte dos pajés, os espíritos deles voltam para lá. É por isso que é muito sagrado e muito perigoso, não só pra nós, yanomami, como para os brancos, que chamamos de napëpë [não índios]. Então, isso é respeitado por todos, não só pelos rapazes, pelos homens, pelos mais velhos, mas pelas mulheres também, principalmente”, conta, em relação ao Yaripo.
Como forma de reverenciar a montanha, os yanomami se submetem, antes da ida, a rituais com os líderes religiosos de sua comunidade. “Antes de a gente ir para lá, tem, com os pajés, cura, porque a gente tem a obrigação de se dirigir a eles para que possam nos benzer, fechar os olhos dos espíritos que vão ficar na mata, principalmente no pico. Benzem a gente e, ao mesmo tempo, com os espíritos deles, os bons espíritos, ficam olhando a nossa caminhada. Espiritualmente, eles acompanham a todos. para não acontecer nada, nenhum bicho, como cobra, picar a gente”, acrescenta.
Para Floriza, a possibilidade de integrar o processo de excursões ao Pico da Neblina foi “praticamente uma luta” de resistência contra a posição dos homens. “Os rapazes achavam que a gente não tinha condição de passar, que a gente tinha deficiências. Mas, para mostrar isso [que as mulheres têm capacidade], participamos desde o plano de visitação. Eram poucas mulheres, mas, aos poucos, outras foram se interessando e entramos no projeto. Isso é importante, a participação das mulheres, porque elas podem mostrar ao turista a culinária, a floresta e as histórias e cuidar delas, as turistas mulheres, porque, às vezes, elas se sentem muito inseguras só com homens.”
Ao ser perguntada se gostaria de enviar aos visitantes alguma mensagem, a fim de manter a sacralização da montanha e da floresta que a rodeia, Floriza diz, sucintamente, que apenas pede respeito. “Gostaria de que, quando entrassem em nosso território, principalmente no do Pico da Neblina, respeitassem tudo que a gente fosse falando para eles. Gostaria que entrassem com a gente com respeito, com carinho”.
Foto – Pixabay