Por meio de técnicas avançadas de biologia molecular, pesquisadores descobrem que duas espécies de rãs distribuídas amplamente pelo Brasil podem na verdade ser subdividas em sete – algumas exclusivas da região amazônica; mudança na classificação pode demandar novas ações de conservação (foto: Gilda V. Andrade / UFMA)
POR – ANDRÉ JULIÃO (AGÊNCIA FAPESP) / NEO MONDO
Mesmo para um especialista em rãs, é praticamente impossível apenas com o olhar diferenciar as espécies Physalaemus cuvieri e Physalaemus ephippifer
Ambas podem ser encontradas em savanas alagadas e em espelhos d’água formados em meio a pastagens, desde a Amazônia até o Rio Grande do Sul. Grosso modo, convencionou-se chamar os espécimes da região norte de P. ephippifer e, os demais, de P. cuvieri ou, popularmente, de rã-cachorro.
Agora, novos estudos financiados pela FAPESP sugerem que esse grupo de anfíbios pode abrigar não apenas duas, mas entre quatro e sete espécies, que só podem ser diferenciadas com precisão por meio de técnicas avançadas de biologia molecular.
Até o momento, nenhuma característica morfológica foi suficiente para discriminar esses animais de cabeça e dorso marrom, faixas laterais escuras e irregulares e manchas avermelhadas na parte interna das coxas e virilha. Também não se observou nenhuma especificidade no canto entoado pelos machos para atrair as fêmeas. No entanto, os cientistas encontraram diferenças citogenéticas e moleculares robustas o suficiente para permitir uma subdivisão.
O trabalho foi publicado na revista Frontiers in Genetics – Evolutionary and Population Genetics por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá (IEPA), Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e de instituições da Argentina e dos Estados Unidos.
“Em teoria, esse grupo de anfíbios anuros [sapos, rãs e pererecas] é composto por duas espécies. Há alguns anos, porém, fizemos um estudo dos cariótipos [conjunto de cromossomos, estruturas que contêm DNA] de exemplares desse grupo e começamos a desconfiar que haveria outras espécies além das duas já descritas”, disse Luciana Bolsoni Lourenço, professora do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp e coordenadora do estudo.
O trabalho mencionado pela pesquisadora foi realizado como parte de um projeto financiado pela FAPESP. Para investigar a hipótese levantada, o grupo coletou rãs dessas supostas duas espécies em nove locais do oeste do Pará e em uma localidade de Roraima. Além disso, os pesquisadores ampliaram a quantidade de marcadores moleculares – sequências de DNA capazes de revelar diferenças entre indivíduos – usados para classificar as espécies.
Foto – Pixabay
A pesquisadora realizou parte do trabalho durante estágio na Universidade do Tennessee, nos Estados Unidos, realizado com apoio da FAPESP. Lourenço contou com a colaboração de Benjamin Minault Fitzpatrick, um dos coautores do artigo.
O trabalho integra ainda um Projeto Temático e um Auxílio à Pesquisa – Parceria para Inovação Tecnológica (PITE), ambos coordenados por Célio Fernando Baptista Haddad, professor do Instituto de Biociências da Unesp, em Rio Claro, que também assina o artigo.
Ferramentas
Apesar das diferenças moleculares, que ficaram ainda mais evidentes quando foram incluídos os chamados marcadores RAD-seq (sequenciamento de DNA associado a sítios de restrição), a descrição formal de novas espécies ainda demanda conhecimentos mais clássicos.
Para poder classificar as espécies como crípticas, ou seja, cujas diferenças só podem ser percebidas no nível molecular, os pesquisadores precisam se certificar de que não há, de fato, características morfológicas ou acústicas que as discriminem. Além disso, é preciso analisar mais indivíduos de fora da Amazônia para ter uma amostragem maior e mais representativa.
O fato de os animais serem tão parecidos fisicamente levanta a questão de que poderia haver acasalamento entre as espécies. Dados ainda não publicados pelo grupo trazem evidências de algumas zonas de contato entre as diferentes linhagens genéticas. Por isso, os pesquisadores estão agora interessados em avaliar se diferenças dos cariótipos podem exercer algum papel no isolamento dessas linhagens.
Uma característica que difere P. ephippifer de todas as demais linhagens reconhecidas até o momento, por exemplo, é a presença do chamado heteromorfismo sexual cromossômico. Nessa espécie, as fêmeas apresentam cromossomos sexuais heteromórficos, ou seja, facilmente distinguíveis entre si. Nas demais, os cromossomos sexuais são homomórficos (iguais tanto em machos quanto em fêmeas).
“Uma hipótese é a de que diferenças relativas aos cromossomos sexuais acarretem uma barreira reprodutiva, o que pode ter auxiliado no isolamento de algumas das linhagens”, disse a pesquisadora.
Conservação
A descoberta de que nesse grupo antes composto por duas espécies pode, na verdade, existir entre quatro e sete tem impacto em ações de conservação. Atualmente, P. cuvieri e P. ephippifer estão na categoria “menos preocupante” da lista vermelha de espécies ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês).
Não se sabe se esse status vai prevalecer para os novos integrantes do grupo, que podem estar em áreas mais suscetíveis à ação humana, por exemplo.
“Quando há duas espécies distribuídas em um grande número de localidades, a preocupação com políticas de conservação pode ser bem diferente daquela que se tem em um cenário com diversas espécies ocorrendo em áreas mais restritas”, disse Lourenço.
Espuma produzida pela agitação de substâncias liberadas pelo casal de rãs enquanto copula protege os ovos de dessecarem pelo sol ou serem comidos por predadores (foto: Gilda V. Andrade / UFMA)