Na agricultura intensiva, animais são criados em ambientes densos, e têm diversidade genética limitada, o que os torna mais suscetíveis a doenças – Foto: OPAS
POR – ONU / NEO MONDO
No passado, os coronavírus que acometiam os humanos causavam apenas infecções leves. Isso mudou em 2002, quando o vírus SARS-CoV se apresentou como a doença que agora conhecemos como SARS. Em 2020, um parente desse mesmo vírus, o SARS-CoV-2, se apresentou como a COVID-19
O especialista ugandês Bernard Bett lidera as pesquisas sobre doenças infecciosas negligenciadas e emergentes no Instituto Internacional de Pesquisa Pecuária, como parte do portfólio do movimento “Melhorando a Saúde Humana”.
Seus estudos sobre zoonoses – doenças transmissíveis entre animais e humanos – foram referência para o Relatório Fronteiras do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) em 2016, e chamaram a atenção para uma questão que agora preocupa o mundo. Nesta entrevista, Bett discute a delicada relação entre seres humanos, animais selvagens e os patógenos que circulam entre eles.
A COVID-19 parece ter pego grande parte do mundo de surpresa. Qual foi sua reação?
Não fiquei surpreso com o surgimento em si. Muitas patologias emergentes foram relatadas nos últimos dez anos, mas não vimos nada como a COVID-19, que afetou quase todos os países do mundo. O que me surpreendeu foi sua rápida disseminação.
As doenças zoonóticas parecem estar ocorrendo com mais frequência do que antes. Por que?
As zoonoses estão realmente mais frequentes. Uma revisão das tendências globais de doenças infecciosas emergentes desde 1940 confirma que seus surtos têm aumentado com o tempo. Cerca de 60% dessas doenças são zoonóticas e mais de 70% das infecções são causadas por patógenos originários na vida selvagem. Algumas das razões pelas quais elas estão mais frequentes são a crescente aproximação entre animais selvagens e humanos, a invasão de habitats naturais, a urbanização e o desenvolvimento socioeconômico.
À medida que a população humana cresce e as economias se desenvolvem, a demanda por alimentos e outros bens também aumenta. Indústrias como a agrícola são intensificadas. O uso da terra, as mudanças climáticas, o desenvolvimento econômico, o crescimento populacional e as pessoas que vivem em áreas densamente povoadas contribuem para o surgimento de zoonoses, facilitando a disseminação de patologias entre animais e seres humanos.
Foto – Shaun Finn por Pixabay
É possível mudar essa realidade? Como os patógenos se cruzam?
As doenças emergentes ocorrem devido a alterações na estrutura biológica de um patógeno, na capacidade dos hospedeiros de resistirem a infecções e/ou na capacidade do ambiente de controlar surtos.
Um vírus inofensivo pode evoluir para uma forma muito mais patogênica, seja por mutações genéticas ou por recombinação com outros organismos que carregam características patogênicas críticas. Pequenas mutações geralmente ocorrem conforme os vírus se multiplicam ou conforme eles tentam sobreviver melhor em seus hospedeiros.
Para os seres humanos, pensamos em mudanças nas práticas de subsistência – principalmente no desenvolvimento socioeconômico, que geralmente promove agricultura intensiva, onde muitos animais são criados em ambientes pequenos e densos. Esses animais e pássaros que são frequentemente criados nas fazendas têm uma diversidade genética limitada. Populações hospedeiras geneticamente homogêneas são mais suscetíveis a doenças.
O uso da terra e as mudanças climáticas reduzem a capacidade do ambiente de controlar infecções. Esses fatores desestabilizam a interação patógeno-hospedeiro em ambientes limpos, aumentando a oportunidade de disseminação zoonótica.
A utilização de áreas protegidas, por exemplo, para horticultura, pastoreio ilegal ou caça de animais silvestres, coloca humanos e animais domésticos em contato direto com ambientes potencialmente infectados. Quando as pessoas degradam os habitats da vida selvagem ou estabelecem seus próprios assentamentos em algumas áreas, elas se tornam parte do ecossistema e do ciclo selvático – o ciclo de transmissão viral que ocorre entre os animais nas florestas.
Reunindo essas três coisas, temos um ambiente ideal para doenças zoonóticas.
Você diria que os seres humanos estão reduzindo os limites entre a vida humana e a animal?
A urbanização influencia a ocorrência de doenças de maneira peculiar. Sistemas de drenagem e eliminação de resíduos inadequados fornecem condições para vetores de artrópodes, roedores e aves transmitirem patógenos para prosperar. A alta densidade da população humana em assentamentos peri-urbanos é outro fator crítico que aumenta esse contato, promovendo a disseminação de patologias infecciosas.
Foto – Pixabay
Como as mudanças climáticas influenciam essa dinâmica?
Existe uma grande ligação entre as mudanças climáticas e a disseminação de doenças. As mudanças climáticas são impulsionadas pelo aumento da temperatura média global. Seus efeitos na transmissão de patologias são complexos.
Em geral, um aumento na temperatura até determinado ponto (em torno de >40°C) amplia as taxas de desenvolvimento de vetores e patógenos – contudo, a partir daí um adicional na temperatura mataria a maioria dos vetores. As mudanças climáticas também promovem a incidência de eventos extremos, como fortes chuvas e inundações, que têm impactos substanciais na propagação de doenças. As inundações, por exemplo, levam à a abundância de vetores, incentivando as infecções transmitidas por artrópodes.
A relação entre seres humanos e natureza é bastante delicada. O que podemos fazer para equilibrá-la?
Em termos de patologias, a biodiversidade é essencial para preservarmos a saúde das pessoas, dos animais e do meio ambiente. Pesquisas mostram que, quando você conserva o meio ambiente e possui várias espécies hospedeiras, o risco geral de transmissão de patógenos é reduzido por meio de algo conhecido como efeito de diluição. Isso ocorre porque, em uma população de hospedeiros mistos, alguns seriam hospedeiros “sem saída”, não permitindo a ocorrência de infecções; por isso, conservar a natureza é uma maneira de mitigar a propagação de doenças.
Quais são algumas lições práticas que podemos extrair da resposta à COVID-19 até agora?
Em primeiro lugar, precisamos relatar as doenças assim que elas surgirem e montar um plano de intervenção eficaz. Em segundo lugar, é bom continuar o que estamos fazendo agora – desenvolvendo medicamentos e vacinas que podem ser aproveitados durante epidemias. Em terceiro lugar, devemos pensar em incentivos para as comunidades participarem do controle de doenças. O distanciamento social funciona bem em algumas regiões, mas em outras, onde as práticas de subsistência exigem que as pessoas se mudem de um lugar para outro, a medida é difícil de implementar.
O que devemos fazer de diferente para reduzir a ocorrência e mitigar o impacto das doenças zoonóticas no futuro?
A natureza cuida bem de si mesma, então, a melhor maneira de gerenciar zoonoses é conservá-la e proteger a biodiversidade.
As intervenções para doenças infecciosas emergentes devem ser implementadas com a colaboração de várias agências inseridas no âmbito da One Health. As doenças zoonóticas afetam seres humanos, rebanhos e vida selvagem ao mesmo tempo. Os médicos especialistas devem se reunir com veterinários, ambientalistas e partes interessadas para encontrar soluções. Os cientistas sociais também devem participar dessas intervenções, pois precisamos entender melhor o comportamento das comunidades para implementar quaisquer mudanças em possíveis pontos focais de zoonoses.
Por fim, precisamos diversificar nossa atenção – observar a economia e os meios de subsistência. Porque, no fim das contas, quando queremos nos recuperar de epidemias ou pandemias, voltamos aos meios de subsistência. Por isso, é importante que os governos pensem em abordagens multifacetadas para enfrentar a COVID-19.