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POR – SUCENA SHKRADA RESK* / NEO MONDO
O antropólogo Adelino Mendez faz uma imersão sobre o atual momento vivido pelos povos indígenas. Esta é a terceira e última entrevista desta primeira série sobre saúde indígena, em tempos de pandemia, do Blog Cidadãos do Mundo
Como ficarmos alheios a um momento tão crítico que atinge a humanidade e, em especial, povos indígenas, aqui no Brasil, com o avanço da pandemia da Covid-19? Os relatos e pedidos de apoio oriundos de diversas parte do país só aumentam, devido às perdas de vida; um clamor de atenção que ecoa na atualidade. Em entrevista ao Blog Cidadãos do Mundo – jornalista Sucena Shkrada Resk, o antropólogo Adelino de Lucena Mendes da Rocha, conhecido profissionalmente por Adelino Mendez, trata deste tema, alertando para o ônus de o poder público não dar à devida atenção a esta crise, que também tem um ângulo cultural e o desafio do isolamento em sociedades predominantemente coletivas.
Antes de sua entrevista, a série contou com os depoimentos de Angela Kaxuyana, coordenadora-tesoureira da Coordenação dos Povos Indígenas da Amazônia (COIAB) e do escritor e educador indígena Daniel Munduruku, que compuseram esta primeira iniciativa focada em saúde indígena, em tempos de pandemia.
Mendez é doutorando do Programa da História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (HCTE/UFRJ) e desenvolve pesquisas na Amazônia, desde 1998. Trabalhou com os indígenas Awá-Guajá, da Amazônia Maranhense; acompanhando o cotidiano de Frentes de Atração na Amazônia brasileira (Akunt`su e Awá-Guajá). Desde 2002, se dedica a estudar questões relacionadas à reciprocidade e à cultura material no Território Indígena do Xingu, em especial, entre os Yawalapiti. É autor do livro “Guerreiros do Norte – Memórias de Um Tempo Histórico”. Sua fala expressa uma relação de respeito cultivada nas últimas décadas à diversidade e modos de vida dos povos indígenas brasileiros, que pode ser acompanhada a partir de agora.
A compreensão das diferenças culturais
O antropólogo explica que o significado da perda de um ente querido pela morte física é em tese, igual para qualquer um de nós. “Mas para sociedades indígenas, a ausência do corpo, devido às regras sanitárias gerais impostas com a Covid-19, compromete e inviabiliza qualquer processo ritual envolvendo o sepultamento de seus parentes (em territórios sagrados, no caso de aldeados), como se para nós fosse enterrar um caixão vazio de uma vítima de acidente aéreo. Para eles, é algo impensável”, diz. Muitos sepultamentos de indígenas estão ocorrendo em cemitérios públicos, sem as cerimônias tradicionais e a presença dos familiares, o que tem causado ‘sofrimento’ entre estes povos afetados.
Segundo Mendez, o corpo íntegro é a representação da alma. “Dentro do pensamento indígena principalmente no Alto Xingu, se você for enterrar, por exemplo, um corpo sem braço, a alma não terá braço e isso é aplicado a qualquer outro membro. Dentro desta cultura, a alma é muito frágil e tem de ser cuidada a partir do corpo. No ‘céu do céu’ para onde deverá seguir, existe um lugar para cada tipo de morte. Sendo assim, o corpo vai ser banhado, adornado, o cabelo cortado e enterrado em determinada posição, dependendo da cultura, para seguir este processo de passagem”, explica.
Existem funerais complexos, como dos Bororo, com muitas etapas, que duram mais de 30 dias, de acordo com o antropólogo. “No ritual fúnebre secundário Bororo, o corpo é exumado em um processo dolorido para eles. É um dos ritos funerais mais complexos que a Antropologia reconhece. O antropólogo Darcy Ribeiro e Marechal Rondon documentaram. O filme “Rituaes e Festas Bororo, realizado em 1917, pelo major Luiz Thomaz Reis, nas suas primeiras filmagens como responsável pela Seção de Cinematografia e Fotografia da Comissão Rondon, é o mais importante para a história do cinema etnográfico, devido ao seu pioneirismo”, conta. Por isso, para as sociedades indígenas, não poder ver e enterrar seu parente é algo devastador, algo que não compreendem.
“Quando se perde especialmente um ‘velho’, em uma sociedade indígena; se perde a memória e, em muitos casos, ‘morre a língua’ e se perdem conhecimentos da cosmogonia, da mata, de animais e da história”, enfatiza o antropólogo. Inúmeros anciãos de diferentes povos estão morrendo por causa da Covid-19, o que tem causado uma grande comoção.
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O desafio do isolamento
A compreensão da necessidade de isolamento social também é algo complexo nas culturas dos povos indígenas. “É difícil explicar a um núcleo indígena pequeno, que vive em um contato diário doméstico e social, que seus integrantes não podem se relacionar e têm de ficar em um isolamento social. Esta complexidade aumenta em sociedade principalmente que têm menos de 50 anos de contato. Mesmo indo à cidade, tendo contato com os não-indígenas, compreender esta necessidade, é difícil. Não é nada fácil explicar os motivos de não poder frequentar a casa do parente, da mãe, do sogro e separar essas famílias nucleares, que são formadas por pai, mãe, genro, filha e netos”, analisa Mendez.
“Não houve uma política pública para evitar o alastramento desta epidemia especialmente na Amazônia. Devia ter sido feito pelo Estado um plano de contenção do avanço; um plano de informação principalmente, porque é um trabalho educativo. Explicar o que seria o isolamento social aos indígenas. A situação hoje está muito difícil. Muitas comunidades estão tendo dificuldade de entendimento entre as lideranças. Os indígenas se veem em um contexto totalmente novo”, observa Mendez.
O risco de perdas de vidas é diário. “É isso que tenho conversado com lideranças no Alto Xingu, por exemplo. Hoje o que observamos é que não há uma política pública efetiva para os indígenas. Como antropólogo, há mais de 20 anos atuando nesta região, vejo que a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) não estão exercendo seu papel e atendendo as comunidades como deveriam”, analisa.
“Ouço relatos de aldeias onde não há medicamentos, máscaras e transporte para as vítimas. Há uma preocupação de que a epidemia se alastre. Nos últimos 100 anos, além do período da Ditatura Militar, este é um dos piores momentos para os povos indígenas”, desabafa.
Segundo a Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (APIB), apesar de a SESAI ter elaborado o “Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus (Covid-19) em Povos Indígenas”, o documento não teve a participação dos povos indígenas, em desacordo com a Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – 169, e é vago, sem medidas práticas eficazes.
O antropólogo também analisa que não há hoje um plano governamental para os povos indígenas, que inclua justamente a revitalização da FUNAI, que está sucateada em um processo que vem se agravando nos últimos 10 anos.
Tendo em vista o histórico de epidemias, durante os mais de 500 anos de ocupação europeia nas Américas, em que os povos sofreram perdas dilacerantes, a prevenção aqui não ocorreu por parte do Governo Federal, segundo Mendez, com a pandemia da Covid-19. Hoje há o registro de mais de 10 mil casos confirmados entre indígenas, com 408 mortes, e 121 povos afetados, segundo a plataforma Covid-19 – e os Povos Indígenas, mantida pela APIB, com apoio do Instituto Socioambiental (ISA).
Os dados foram coletados até às 12h do dia 2 de julho (sem considerar subnotificações) com base em informações da SESAI, de Secretarias municipais e de Estado da Saúde, do Ministério Público Federal e da rede da própria Articulação. A estimativa é de que o índice de letalidade da Covid-19, entre povos indígenas, atualmente é de 9,6%, enquanto o percentual entre a população brasileira em geral, é de 5,6%.
Mendez conclui que mais um ângulo que precisa ser destacado é a dificuldade de se saber o que está realmente acontecendo com os povos em isolamento voluntário. “Não há um acompanhamento efetivo. Hoje há o registro na ordem de 30 destes povos confirmados e mais de 100 vestígios da presença deles. É necessário salvaguardar este ‘eldorado’ principalmente da Amazônia. O governo não tem noção do que se pode perder se não houver esta proteção”, alerta.
Veja também no Blog Cidadãos do Mundo (desde 2007, voltado às áreas de cidadania, socioambientalismo e sustentabilidade) artigos referentes a esse e outros temas, ao longo dos últimos anos. É só consultar na busca.
*Sucena Shkrada Resk é jornalista, formada há 28 anos, pela PUC-SP, com especializações lato sensu em Meio Ambiente e Sociedade e em Política Internacional, pela FESPSP, e autora do Blog Cidadãos do Mundo.
Tribo indígena isolada, aldeia Caxinauá (AC) – Foto: Ricardo Stuckert