Pátio da GM – Foto: EBC
POR – WALTER DE SIMONI* e CRISTINA ALBUQUERQUE*, PARA NEO MONDO
Postergar o Proconve será um retrocesso com efeitos na saúde da população e possíveis implicações comerciais
Era esperada uma crise na indústria automotiva decorrente do impacto do novo coronavírus, que vem afetando em diferentes graus a economia nacional. O que não se esperava era o pedido da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) para adiar por até três anos a implementação de regras para a fabricação de veículos menos poluentes.
A decisão pelo adiamento é uma ameaça à saúde da população e pode colocar o Brasil em direção contrária ao movimento mundial de adoção de uma economia mais limpa e de baixo carbono, da qual o país tem potencial para ser um líder. O Ministério Público Federal, a Coalizão Respirar e outras instituições da sociedade civil já se posicionaram contra o adiamento.
As regras ambientais para atualização da indústria automotiva são estabelecidas em fases no âmbito do Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve), criado em 1986 para limitar e reduzir a emissão de poluentes atmosféricos pelos veículos. Cabe ao Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) regulamentar e estabelecer essas regras que se aplicam à indústria automotiva.
A próxima fase do Proconve estabelece que, a partir de 2023, veículos pesados movidos a diesel sigam as normas do padrão Euro 6, que em comparação ao atual (Euro 5) reduz em média 95% de óxidos de nitrogênio (NOx) e 90% de material particulado (MP), dois dos principais poluentes locais emitidos por essa categoria de veículos. No estado de São Paulo, por exemplo, caminhões pesados e ônibus respondem por menos de 4% da frota de veículos rodoviários e por mais de 80% das emissões de MP e NOx. A indústria pede mais três anos para cumprir o prazo, usando a queda de receita como justificativa.
O Brasil tem uma governança falha na gestão de qualidade do ar, com poucos Estados cumprindo o monitoramento da poluição local, e os nossos padrões chegam a ser de três a quatro vezes mais permissivos do que os valores de segurança definidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Agravaremos demais o quadro se o país tolerar a manutenção de tecnologias ultrapassadas com o adiamento do Proconve.
Os dados mais recentes do Ministério da Saúde indicam que mais de 44 mil pessoas morreram no país em decorrência da poluição do ar em 2016, número superior ao de vítimas de crimes violentos no ano passado. Além dos altos gastos com a saúde pública e as perdas de produtividade do setor privado – com ausências no trabalho e internações relacionadas à poluição do ar –, o adiamento traz outros problemas graves.
Foto – Pixabay
Ficar mais tempo refém de uma tecnologia antiga não é condizente com a adoção de uma economia verde, mais próspera, resiliente e justa. Estamos ficando para trás, se comparados a outras economias emergentes. A Índia, por exemplo, manteve seu compromisso de avançar com o sistema Euro 6 em plena pandemia. O México já comercializa veículos Euro 6, embora ainda discuta o prazo para adoção obrigatória do padrão, e a Colômbia e o Peru pretendem adotá-lo até 2023.
A instabilidade financeira não deveria servir de justificativa justamente quando parceiros comerciais estabelecem cada vez mais restrições alfandegárias para tecnologias poluentes, inconsistentes com uma economia moderna e mais limpa. Quanto mais rápido o padrão Euro 6 estiver disponível no Brasil, melhor será para garantir a posição do país como um líder exportador na América Latina. Apenas em 2018, foram 33.743 caminhões e ônibus comercializados para o Mercosul, segundo a Anfavea. Manter esse padrão de produção e vendas, garantindo a qualidade do ar, deve ser nossa meta.
O padrão Euro 6 para caminhões e ônibus a diesel já é adotado pelas fabricantes automotivas nos Estados Unidos, Canadá, Japão, Coreia do Sul e União Europeia há muitos anos, indicando que elas têm a tecnologia e as condições para colocar padrões mais avançados à disposição das suas filiais internacionais. É paradoxal o fato de que o parque industrial brasileiro produza ônibus com o padrão Euro 6 e venda para o Chile. Exportar ônibus menos poluentes para nossos vizinhos enquanto ônibus Euro 6 continuam circulando em território nacional é uma grave contradição.
Importante mencionar que a fronteira da inovação do setor está nos veículos elétricos, híbridos-elétricos e de combustíveis de novas gerações, que logo deixarão também o Euro 6 ultrapassado. A sociedade demanda cidades sustentáveis, qualidade de vida e modais de mobilidade urbana mais limpos. Não podemos manter um sistema de motorização antigo, com tecnologia sucateada, que prejudica a saúde dos brasileiros, agrava as mudanças no clima do planeta, além de afetar a competitividade dos nossos veículos. É fundamental honrar o prazo legal e não autorizar o adiamento do cumprimento de exigências legais mais uma vez, como já aconteceu em 2018, por vergonhosa decisão do Conama.
A crise causada pela Covid-19 mostra as economias mais fortes do planeta buscando uma retomada verde e exigindo esse movimento de outros países para a assinatura de acordos internacionais. Se seguir o caminho da economia mais limpa, moderna e de baixo carbono, o Brasil tem o potencial de um aumento acumulado adicional do PIB de R$ 2,8 trilhões até o final da década, gerando também 2 milhões de empregos a mais em 2030, como mostrou estudo recente liderado pelo WRI Brasil. Espera-se que o Conama honre o compromisso que estabeleceu e respeite a saúde dos brasileiros.
*Walter F. De Simoni é coordenador de Clima e Cidades do WRI Brasil. Formado em economia e estudos ambientais pela Universidade de Tufts (EUA).
*Cristina Albuquerque é gerente de Mobilidade Urbana do WRI Brasil, graduada em engenharia de produção pela UFRGS e mestre em Sistemas de Transporte pela mesma universidade.