O presidente do Conselho da Amazônia Legal, Hamilton Mourão, e os ministros do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e Agricultura, Tereza Cristina, em viagem à Amazônia – Foto: Bruno Batista/VPR
ARTIGO
POR – CLÁUDIO C. MARETTI* / NEO MONDO
Nos últimos dias fomos mais uma vez tomados de surpresa pela informação de que há uma iniciativa no governo federal, advinda do Conselho Nacional da Amazônia Legal, propondo “controlar” as atividades das “ONGs”, especialmente na Amazônia, na defesa dos “interesses nacionais”. Isso na verdade é apenas uma das metas, parte de um “Plano Estratégico 2020-2030” do Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL), o qual, apesar de contar com linguagem um pouco mais institucional e técnica, não necessariamente representa um plano de boa qualidade, nas suas prioridades e na sua estrutura.
Tem sido muito comentado o fato de que há uma meta para “Obter o controle de 100% das ONGs, que atuam na Região Amazônica, até 2022, a fim de autorizar somente aquelas que atendem aos interesses nacionais” (na ação setorial “2.1.8.1. Criar marco regulatório para atuação das ONGs”, do objetivo operacional “2.1.8. Garantir a prevalência dos interesses nacionais sobre os individuais e os políticos”). Inicialmente houve negativa do vice-presidente da República, especificamente sobre esse ponto, mas o documento mostra ofício encaminhado por ele a ministros.
Essa meta mostra a perspectiva controladora, autoritária, mas não é o único elemento que merece atenção nesse plano. O plano apresenta propostos objetivos de preservação (que podemos entender por conservação da natureza), proteção (que podemos entender como fiscalização) e desenvolvimento sustentável (que eles entendem como regularização da agropecuária, infraestrutura etc.) da Amazônia Legal. A relatividade do conceito de preservação, como usado no plano, fica claro quando se vê nele incluídos: “com o objetivo de regularizar os assentamentos irregulares e conceder a titulação aos seus ocupantes”, “promover assentamentos rurais” e “avaliar, revisar e regularizar unidades de conservação, terras indígenas e quilombolas”. Mas ficam claras as perspectivas controladoras, com tendências de militarização, quando se nota a ausência dos órgãos ambientais, Polícia Federal e polícias militares e o domínio pelas Forças Armadas e instituições associadas. O mesmo ocorre com as imagens espaciais ou informações de sensoriamento remoto. Mesmo a intenção fortemente presente de combate a ilícitos, caracterizados principalmente como ambientais, fundiários e transfronteiriços (o que não seria equivocado), mas sob controle militar excepcional.
Esse plano foi exposto em uma apresentação sobre a 3ª reunião do CNAL, a qual apresenta um tom mais incisivo, quase beligerante. Usando conceitos potencialmente questionáveis, como ‘espaço vital’, ‘importância geopolítica’ etc., identifica supostos interesses antinacionais: “interesses expressos nas estratégias geopolíticas de países e instituições internacionais (apoio das entidades ambientalistas aos governos europeus – interesse comercial de proteção ao agronegócio); interesses menos republicanos entre nacionais; apropriação do que os grupos de ecologistas e ambientalistas chamam hoje de ‘capital natural ou capital intangível’” etc., deixando a entender que as discussões internacionais não seriam do interesse nacional e que este somente seria alcançado pelo fortalecimento da soberania do plano estratégico do Conselho da Amazônia.
Aparentemente se confunde (mais uma vez?) a segurança interna e o combate à criminalidade com a segurança externa e a soberania nacional, inclusive em termos das competências legais de cada instituição. Além disso, soberania e interesses nacionais são mais complexos para serem alcançados somente por perspectivas bélicas.
Entre os documentos também há uma “Matriz de Acompanhamento das Ações Imediatas do CNAL”, com algumas ações já em andamento, como a “organização de missão de reconhecimento à Amazônia Legal com embaixadores estrangeiros” (que aparentemente foi uma visita aos quarteis além de áreas selecionadas da floresta). Chama a atenção aos “projetos de reestruturação” da Funai, do Ibama, do ICMBio e do Incra – considerando que o que se vê atualmente é o seu progressivo enfraquecimento.
Embora o plano e os documentos que o acompanham apresentem elementos corretos (combinar conservação com desenvolvimento) e intenções interessantes (como fortalecer os órgãos gestores de terras indígenas e quilombolas e unidades de conservação – embora talvez vazias, pelo que tem sido visto), o domínio militar de atividades internas ao país (algumas já demonstrando baixa capacidade, como o combate aos incêndios e ao desmatamento), o desrespeito a competências, inclusive legais, de instituições existentes, a relatividade da conservação e aos direitos povos e comunidades tradicionais e unidades de conservação, merecem algumas considerações mais aprofundadas, que apresento abaixo (depois de haver lido o que foi possível dos documentos oficiais e consultar legislações, estudos e notícias e manifestação na imprensa e na internet).
Crianças da etnia Ashaninka na aldeia apiwtxa no Acre – Foto Divulgação
Organizações não governamentais
1) Pela forma como essas informações são veiculadas, pode até parecer que as organizações não governamentais (em seu sentido genérico) não precisam seguir legislação alguma. Muito ao contrário. Sempre houve regras para se estabelecer ou formalizar uma organização da sociedade. Há regramentos no chamado Código Civil (ou a Lei nº 10.406, de 2002, substituindo o código anterior, vigente desde 1916). Simplificadamente, as pessoas podem se reunir ou realizar atividades, sem restrições maiores, em relação a sua atuação como grupo, desde que se siga a legislação geral do país, que todos devemos respeitar. Mas, ao querer que esse grupo tenha sua própria personalidade jurídica (tenha um CNPJ – cadastro nacional de pessoas jurídicas), outras providencias são obrigatórias, seja para associações de bairro, seja para grupos com atuação em determinado assunto de interesse (como futebol, filatelia etc.), entre outros tipos de organização formal. ‘Associação’ parece ser o termo legal mais geral para organizações sem fins lucrativos.
Não faz muito tempo que o país discutiu por alguns anos e aprovou a Lei nacional nº 13.019, de 2014 (alterando as anteriores Leis nº 8.429, 1992, e nº 9.790, 1999), logo ajustada pela Lei nacional nº 13.204, de 2015, chamada de Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (Mrosc). Por esta lei, as organizações da sociedade civil podem ser de três tipos: as organizações de vínculo religioso mas em atividades de interesse público ou social geral (portanto, não considerando as igrejas ou organizações religiosas do Código Civil em suas atividades principais); as sociedades cooperativas (como previstas na Lei nº 9.867, de 1999); e as entidades privadas sem fins lucrativos em geral que não distribua recursos entre os participantes. Um dos principais objetivos dessa lei é a sua relação com a administração pública, procurando evitar equívocos ou desvios nessa relação entre entes públicos e privados (no caso, organizações da sociedade civil). (Há também outras possibilidades de vínculos de entidades do campo privado com instituições públicas, como as organizações sociais ou as organizações da sociedade civil de interesse público.)
Assim, pode ser considerado que há associações da sociedade para interesses dos próprios membros e outras organizações da sociedade com atuação de interesse público, indo além dos interesses de benefício próprio do grupo formador. Mas, em qualquer situação, a sociedade tem um campo privado, o qual, de forma simplificada e não legal, é potencialmente formado por indivíduos (com possibilidade de ter CPF – cadastro de pessoas físicas, para fins fiscais), empresas, associações de interesse próprio e organizações com atuação no interesse da sociedade (todas com obrigação de ter CNPJ), além do campo comunitário tradicional, cada componente da sociedade subordinado às leis gerais do país e às específicas, tanto relacionadas pelo tipo de organização, como em relação aos seus locais de atuação. Existem conceitos gerais da vida em sociedade que parece se aplicarem neste assunto: “todos temos direitos e deveres, como membros de uma sociedade”; mas, para evitar abusos, “em princípio, os cidadãos podem fazer tudo o que não seja proibido por lei, enquanto que os entes públicos só podem fazer o que esteja previsto em lei”.
Não existe definição legal de “organizações não governamentais” ou “ONGs”. Há alguns entendimentos diferentes sobre sua origem e sua atuação. Mas, de modo geral, são entendidas como aquelas organizações da sociedade que atuam no interesse público (além do interesse próprio do grupo formador), em temas tão diversos como assistência social, promoção da saúde, apoio à educação, conscientização sobre a importância do combate à corrupção, promoção do desenvolvimento sustentável (incluindo perspectivas diferentes), defesa do meio ambiente (inclui ambiente urbano, industrial etc.), promoção da concorrência econômica (na visão liberal), fomento à organização social, defesa do patrimônio cultural, material ou imaterial, e defesa da conservação da natureza, entre muitas outras possibilidades.
Alguns dizem que algumas dessas organizações atuam nas lacunas de atuação do Estado. Mas de forma alguma há uma substituição legal. Haveria apenas atuação complementar onde a implementação das políticas públicas seria insuficiente. No entanto, para outros não deveríamos esperar que o Estado seja provedor de todas as condições da vida em sociedade. Eles entendem que é próprio da sociedade se organizar e atuar em prol do bem social e em defesa dos interesses dos grupos sociais. (Devido à sua relativa importância na economia, estudos econômicos introduziram o termo “terceiro setor” para diferenciar esse tipo de atuação das instituições públicas, o chamado primeiro setor, e das empresas ou sociedades ou entidades privadas com fins de benefícios econômicos, o chamado segundo setor. Mas esse enfoque econômico fica ainda mais longe de definir o que são essas organizações.) Ou seja, as chamadas “ONGs” são associações ou fundações, segundo o Código Civil, e são organizações da sociedade civil, segundo o marco regulatório próprio (já existente, como apresentado acima), que atuam em prol de interesses da sociedade.
Foto – Pixabay
Atuação na Amazônia
2) Não é novidade, mas é sempre intrigante que haja essa atenção especial sobre a Amazônia. Segundo repetidas argumentações de membros do governo (e do campo social que o apoia), as chamadas “ONGs” estariam concentradas na Amazônia, atuando na defesa do meio ambiente. (Isso não coincide com os dados do IBGE, que indicam que 3,9% das 237 mil entidades sem fins lucrativos no Brasil em 2016 estão situadas na região Norte. Menos de 1% delas têm atuação específica em “meio ambiente e proteção animal”, mas 35,1% têm vocação religiosa. Ou, segundo o Ipea, das 782 mil organizações da sociedade civil no Brasil, 7,2% estão na região Norte e a maior parte (47%) atuando em “desenvolvimento e defesa de direitos”.) Outra argumentação é de que há financiamento internacional para atuação dessas as chamadas “ONGs” (ou organizações da sociedade civil, como apresentado acima). E sobretudo de que elas, ao proporem a conservação da Amazônia e a defesa dos povos e comunidades tradicionais, estariam a serviço de interesses de outros países. Uma análise mais isenta revela um contexto muito mais complexo. Para começar, haveria que considerar que a conservação da Amazônia não seria de interesse para o Brasil. Isso é claramente equivocado por várias perspectivas.
Em primeiro lugar, na Amazônia há povos indígenas e outras comunidades tradicionais (extrativistas, ribeirinho/as, quilombolas, pescadores/as e coletores/as artesanais etc.), os quais, além do direito a sua reprodução sociocultural diferenciada da maioria da sociedade (direito baseado também na Constituição Brasileira de 1988), vivem em estreita relação com os ecossistemas, com seu uso sustentável, e colaboram com sua conservação, para benefício de toda a sociedade. Além do mais, esses povos e comunidades tradicionais são brasileiros, têm direitos. E o Brasil tem responsabilidades sobre eles, inclusive legais, além de morais – para não falar do reconhecimento das agressões históricas.
Em segundo lugar, vale lembrar que a ciência segue descrevendo novas espécies na Amazônia a uma taxa surpreendente (várias delas já conhecidas de povos e comunidades tradicionais, mas novas para a ciência ‘oficial’). Desprezar essa riqueza – das espécies, dos ecossistemas e dos conhecimentos dos povos e comunidades tradicionais –, além de perder conhecimento e natureza, é uma falta de inteligência no caminho do desenvolvimento. Afinal, desprezamos o potencial de aproveitamento de algo que é nosso para seguirmos na fila dos modelos importados, seja da produção agropecuária clássica, seja da bioeconomia, do design ou outros caminhos mais contemporâneos.
Poderíamos ir muito mais a fundo e na variedade de riquezas naturais e de serviços que os ecossistemas amazônicos nos prestam, às sociedades, brasileira e outras, mas vale ainda destacar um dos papéis fundamentais da Amazônia na regulação do clima. Além de ser muito importante evitar as emissões de gases do efeito estufa (por meio do desmatamento e da queima das florestas), a manutenção da Amazônia garante o fluxo de umidade pela atmosfera que é parcialmente responsável pelas chuvas na própria Amazônia e no centro-sul da América do Sul. E, como sabemos, a estabilidade climática é fundamental para a produção agropecuária. Mas vale também destacar os riscos que os eventos mais drásticos provocados pelas mudanças climáticas apresentam para as cidades (como as enchentes, com potencial de mortes e certeza de danos sociais e econômicos) e ao abastecimento de água.
É possível se aprofundar nas análises econômicas, mostrando que os montantes de recursos econômicos envolvidos na conservação da natureza e na defesa dos povos indígenas e comunidades tradicionais, inclusive com a cooperação internacional, são muitíssimo inferiores aos volumes financeiros envolvidos nas atividades de produção agropecuária, exploração minerária, produção de energia etc.
Ainda, há quem afirme que se dá atenção demasiada à Amazônia, em contraste, por exemplo, com outros biomas e ecossistemas existentes no Brasil e em comparação com comunidades carentes, como na região Nordeste. Vale lembrar que, pelos dados oficiais, há muito mais organizações da sociedade civil na região Sudeste e no Nordeste, que no Norte. E que há muito mais organizações da sociedade civil atuando em temas sociais que de conservação da natureza. Vale também termos atenção ao fato de que a Amazônia é o conjunto de ecossistemas mais importante do mundo. O fato de o Brasil deter cerca de 60% do chamado bioma amazônico não lhe deixa alternativa senão cuidar desse patrimônio que é mundial, mas é também brasileiro, e fazer isso em benefício do Brasil, ao mesmo tempo em que beneficia o mundo todo, ainda que não necessite ficar sozinho nessa função.
Adenomera chicomendesi, nova espécie de anfíbio encontrado no Acre é nomeado em homenagem a Chico Mendes – Foto: Thiago Carvalho
Interesse internacional na Amazônia
3) O terceiro tema que vale a pena enfocar é o de interesses estrangeiros, estranhos à maioria da sociedade, inadequados aos interesses nacionais ou similares.
Uma das formas de estar a serviço desses interesses seria via o apoio financeiro. Estudos mostram que há muita diversificação de fontes de financiamento. Há alguns anos se acusavam de as chamadas “organizações não governamentais” de receberem muitos recursos governamentais. De fato, uma parte dos recursos econômicos vinha de fontes governamentais. Atualmente se acusam essas chamadas “ONGs” de receberem recursos internacionais. E, de fato, uma parte vem de fontes internacionais. O que parece mais claro, no entanto, é a diversidade de situações em relação a fontes financeiras, incluindo projetos, associados, doações, prestação de serviços etc., locais, nacionais e internacionais, entre outras possibilidades. Considerando que uma parte muito significativa das organizações da sociedade civil, dedicadas ao interesse público, atuam em temas sociais e têm relacionamento com entidades religiosas, há indicações de que a sociedade brasileira é uma das fontes econômicas fundamentais dessa atuação. (Ou seja, a narrativa de que as organizações da sociedade civil e seu financiamento são estranhas à maioria da sociedade não parece ser muito real. Eu me lembro que minha falecida mãe contribuía a várias entidades sociais.)
Outro ponto por vezes destacado é relacionado ao fato de que teria havido corrupção nessas relações entre governos e as chamadas organizações não governamentais. Isso foi mais importante quando se acusavam as chamadas ONGs de serem muito vinculadas às fontes econômicas governamentais. E, em parte, teria motivado a reforma da legislação, com a construção do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (Mrosc), apresentado acima. Por tudo o que sabemos, há de fato casos de corrupção a partir de autoridades ou servidores governamentais com organizações da sociedade civil, mas em volume relativo pequeno. E muito menor do que a corrupção relacionada a empresas, seja ela originaria das autoridades ou servidores governamentais, seja ela originada nos empresários, dirigentes ou empresas de forma mais sistêmica. Seria o caso então de concluirmos que as empresas são por si só negativas, já que há (aparentemente muitos) casos de corrupção envolvendo-as (como às vezes se tenta descrever o caso das organizações da sociedade civil)?
Vale também refletir sobre uma das suposições subjacentes às acusações: o interesse das outras nações seria diferente do brasileiro – isto é, algo que eventualmente beneficie outros países, outras economias, outros povos, seria contrário aos interesses brasileiros. Se a Amazônia contribui com o bem-estar, as atividades econômicas atuais e grandes potenciais de desenvolvimento alternativos para o mundo, por que isso seria negativo ao Brasil? A menos que os brasileiros virassem as costas a esses benefícios e potenciais – como, de fato, alguns brasileiros o fazem. Antes a acusação era de interesses norte-americanos. Agora, com a suposta “aliança automática com os EUA”, a acusação vai em direção a interesses europeus. Ou chineses? (Como se os grandes capitais internacionais tivessem mais interesse em seus países de origem do que na lucratividade de suas atividades.) Curioso é notar que, quem defende essa dicotomia entre interesses brasileiros e de outros países não faz o mesmo quando o tema é economia, comércio e finanças. O controle econômico de mercados mundiais, com os quais nos relacionamos, com produtos minerais e da agropecuária, não traz dentro de si essa contradição, entre interesses “nacionais” e estrangeiros? (Esse domínio econômico não afeta a conservação da natureza ou a defesa dos povos e comunidades tradicionais?)
O que parece, na verdade, é que é a acusação (de que ONGs atuam na conservação da natureza e na defesa dos povos e comunidades tradicionais e a tentativa de retirá-las de campo) que acaba por servir aos interesses (internacionais e nacionais) de exploração não sustentável das riquezas nacionais (dos recursos minerais, do solo, do clima, da biodiversidade…) em benefício de uns poucos, muitas vezes em processos não totalmente legalizados, e muitas vezes não brasileiros ou associados a interesses internacionais.
Garimpo do tatuzão na terra yanomami – Foto: Marilia Garcia Senlle/ISA
Parcerias
4) Algumas organizações da sociedade brasileira associadas com financiamento internacional têm de fato atuado na defesa da natureza, dos povos e comunidades tradicionais e do desenvolvimento sustentável na Amazônia.
Em exemplo recente e atual, a partir de parceria de há alguns anos do ICMBio e da Funai com os EUA (sim, inicialmente com o Serviço Florestal dos EUA e atualmente por meio da “US-Aid”), várias organizações da sociedade civil, tanto as locais, representando interesses dos povos e comunidades tradicionais, como aquelas atuando na assistência técnica e organizacional, com sede na Amazônia e fora dela, têm organizado cadeias de valor (da produção à comercialização, passando pela melhoria do beneficiamento) de produtos das florestas e dos rios – portanto em prol do desenvolvimento sustentável da Amazônia.
Em outro exemplo interessante, forte desde o final da década de 1990, ainda atuante recentemente, organizações da sociedade civil ajudaram significativamente, tanto com assistência técnica, como com recursos econômicos e financeiros, em programas governamentais de criação e manutenção de áreas protegidas, em escala que a Amazônia merece, como no caso do Programa Arpa – Áreas Protegidas da Amazônia Brasileira. Nos últimos anos esse exemplo tem influenciando iniciativas benéficas também na Colômbia e no Peru. Trata-se de apoio dessas organizações no fluxo de recursos e capacidades para defesa de interesses nacionais. E internacionais.
Igualmente, podemos lembrar programas de apoio governamental internacional para a defesa das florestas tropicais, fortes sobretudo na década de 1980, com recursos governamentais dos EUA, de países asiáticos e europeus. Várias atividades foram executadas por organizações da sociedade civil. Mas, assim como o exemplo recente do Programa Amazônia, com recursos principalmente governamentais europeus, as principais beneficiadas diretas foram as instituições brasileiras governamentais, federais e estaduais, e indiretamente a sociedade.
Portanto, novamente, a conservação da Amazônia e a defesa dos povos indígenas e comunidades tradicionais seriam contrárias aos interesses brasileiros?
Conclusões possíveis
Dessa forma, afirmamos que há organizações da sociedade civil, dedicadas ao interesse público, atuando na defesa da natureza, dos povos e comunidades tradicionais, atuando em defesa da Amazônia, com fontes de financiamento internacionais. Assim como também há organizações da sociedade civil atuando em várias outras partes do país, em vários outros temas, com várias outras fontes de financiamento – inclusive uma parte muito significativa sendo de organizações que tem vínculos com religiões, que atuam em prol de temas sociais, sobretudo nas regiões Sudeste e Nordeste e com financiamento da própria sociedade brasileira.
As questões que se colocam são o que é o “interesse nacional”, se existe só um interesse nacional e se o interesse nacional seria necessariamente antagônico a interesses de outros povos, outras nações, outros países, outras sociedades, outras economias etc.
Seria contra o interesse nacional a defesa da qualidade de vida e do desenvolvimento sustentável?
Seria favorável ao interesse nacional a defesa da exploração de minérios a qualquer custo, a exportação de produtos agropecuários com prejuízo das nossas florestas, dos nossos rios e dos nossos povos e comunidades tradicionais? (Com isso não afirmo que sempre as atividades econômicas agropecuárias, minerárias e outras são negativas. Muitas vezes elas são resultado das opções de desenvolvimento do país e das regiões. A questão é que nem sempre são sustentáveis, ou totalmente legalizadas, nem sempre são desenvolvidas em benefício da maior parte da sociedade, nem sempre respeitam as necessidades de conservação etc. Essas são negativas aos interesses, do Brasil e do mundo.)
As organizações da sociedade civil precisam de mais um marco regulatório, agora especificamente para o controle da atuação das “ONGs” na Amazônia? As empresas e os cidadãos brasileiros necessitam de maior controle do Estado, para definição do que são os interesses brasileiros? O que parece é que há regulação adequada. As demandas especificas parece estarem a serviço de outros interesses, menos claros ou de uma sociedade mais autoritária.
Ou seja, claramente não necessitamos de mais um marco regulatório para as organizações da sociedade civil. Nem que seja especificamente para o controle da atuação das ONGs na Amazônia. Muito menos na defesa do interesse nacional.
A reação das organizações da sociedade civil deixou clara a defesa dos direitos constitucionais da sociedade brasileira.
Tampouco parece que o proposto “plano estratégico” seria necessário ou adequado. Se o plano prevê “três grandes objetivos estratégicos gerais”: preservação, proteção e desenvolvimento sustentável, alternativas mais interessantes seriam reconhecer os povos e comunidades tradicionais, apoiar a ciência e as áreas protegidas e fortalecer as instituições públicas, tanto ambientais (como ICMBio e Ibama), como aquelas com responsabilidades sobre povos e comunidades tradicionais (como Funai, Incra etc.) – inclusive: definir boas diretrizes, legais e seguindo políticas públicas formais; prover com adequados quadros de pessoal, com servidores em número suficiente, com boa estratégia de capacitação; financiar adequadamente, inclusive com bom orçamento público, boa execução de projetos de cooperação internacional etc.
Mas, ao contrário, o que transparece é o interesse no avanço da militarização da Amazônia, de forma menos econômica, inclusive às custas dos orçamentos das instituições ambientais, menos eficiente e usurpando suas responsabilidades legais, isto é, de forma inconstitucional, e sem nenhum respeito aos povos indígenas e comunidades tradicionais.
*Cláudio Maretti – Especialista em ordenamento territorial, conservação, comunidades e sustentabilidade. Doutor, com 40 anos de experiência profissional internacional. Hoje consultor, voluntário e vice-presidente da Comissão Mundial de Áreas Protegidas, da UICN.
Notas
[1] Uma versão resumida deste artigo foi publicada inicialmente no Jornal da USP: “Necessitamos de mais um marco regulatório para o controle da atuação das ONGs na Amazônia?” (em 17 de novembro de 2020).
Uma versão mais completa, com notas-de-fim-de-texto, encontra-se disponível na conta do autor no ResearchGate: Como definir o interesse nacional na Amazônia? As opções são entre o que é nacional e o internacional? Ou seria entre o desenvolvimento sustentável e a exploração predatória? Necessitamos de mais um marco regulatório para as organizações da sociedade civil? Especificamente para o controle da atuação das ONGs na Amazônia? (em 23 de novembro de 2020). Essas notas reproduzem algo dos documentos. Para apresentar versões sem notas, alguns parágrafos iniciais foram acrescentados com comentários sobre esse conteúdo.
Esta versão para O Eco é intermediária.