BRT lotado no Rio de Janeiro – Foto: Divulgação
ARTIGO
POR – ANDRÉ GONÇALVES ZIPPERER*, PARA NEO MONDO
Em 1969, o economista Harold Demsetz escreveu um artigo denominado “Informação e eficiência: um outro ponto de vista” (tradução livre), no qual acusava seu colega Kenneth Arrow de adotar, em outro estudo, o que chamou de a “abordagem do Nirvana”. No artigo, o professor Demsetz cunhou a expressão “Falácia do Nirvana” para se referir a quem adota o ponto de vista do nirvana, ou mundo perfeito, para criticar o mundo real de alternativas reais.
Tal falácia cria uma falsa dicotomia que apresenta uma opção que é, obviamente, vantajosa. Essa solução é, ao mesmo tempo, completamente impossível. Aqui, a palavra nirvana é utilizada no contexto do Budismo, ou seja, um estado permanente e definitivo de beatitude, felicidade, plenitude e perfeição.
Assim sendo, ela ignora que qualquer proposta de possível melhora para determinado problema é, frequentemente, preferível em detrimento de uma outra solução que sequer possui meios de se concretizar. Via de regra, o interlocutor que se utiliza deste tipo de subterfúgio assume que, se uma ação não é a perfeita para um problema, ela não terá serventia. Ao utilizar a falácia do nirvana existe uma desqualificação de uma oposição à sua ideia, pois ela sempre será imperfeita.
Uma retórica próxima à falácia do nirvana é a falácia da solução perfeita, ou seja, a rejeição de todas as alternativas porque nenhuma delas atende os objetivos perfeitamente. Ela surge quando o interlocutor se recusa a pensar em termos de mudanças marginais (via de regra por conveniência ou por algum tipo de atitude egoística), comparando alternativas residuais com alternativas idealizadas, cuja perfeição é inatingível.
Essa retórica tem dominado as discussões em tempos de necessário afastamento social, segundo a popular postulação falaciosa: “estes movimentos de fechamentos do comércio e afastamento social não vão funcionar porque ainda vai existir contato no transporte coletivo ou no supermercado, não importa o que se faça.” A “falácia do ônibus lotado”.
A sua refutação é que a erradicação completa do contato e da aproximação social não é o resultado esperado. O objetivo é a redução desse fato ao se evitar o contato que não seja absolutamente necessário. Esses argumentos de senso comum quase sempre acompanham a postulação egoística para a aglomeração social que convenha ao interlocutor. Seja praia, bar, evento ou qualquer outro que lhe interesse.
A “falácia do ônibus lotado” também serve, com as devidas adaptações de linguagem, para inibir outras soluções marginais, como circulação restrita em certos horários, limite de frequência e outras – todas elas desservindo a uma solução porque sempre existirá… o ônibus lotado.
Sem entrar no mérito da infâmia que é comparar a utilização de única forma de transporte possível a um trabalhador que busca a sobrevivência a um momento de festa – a pretexto de encontrar uma justificativa ao segundo fechando os olhos aos efeitos coletivos de suas ações particulares – a atitude, além de egoísta (em direção à essência da maldade humana como Saramago procurou mostrar em “ensaio sobre a cegueira”), também mostra a apelação a uma alternativa que obviamente não é viável, a proibição do uso de transporte público ou o fechamento dos mercados, ou seja, a refutação da alternativa real em razão do não atingimento do ideal, como explicava Demsetz.
E, antes fosse somente uma falácia de senso comum a justificar atitudes dentro do interesse que caiba ao interlocutor, o discurso é usado para justificar atos que podem causar danos às pessoas, atos esses que são convenientemente abstraídos porque sempre vai haver um outro tipo de contato.
O momento requer empatia e cuidado. Em um mundo infestado de informações – verdadeiras, falsas, úteis, inúteis – no qual as pessoas parecem ter perdido o receio de construir discursos que causem dano a outros, desde que encontrem justificativa para isso, consciência, bom senso e responsabilidade são itens de primeira ordem.