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ARTIGO
POR – ELLEN CARBONARI*, PARA NEO MONDO
Ao buscar resolver problemas reais, sejam eles econômicos ou sociais, via soluções mercadológicas, a mulher empreendedora revela quais estruturas instaladas não permitem o avanço da igualdade e equanimidade social. Isto é revelador e, se permitirmos, libertador. Não se quer que todos os seres sejam felizes e tenham condições de viver bem? Talvez por isso não é justo que essa mulher empreenda só, uma vez que seu empreender contribui para movimentar todo o tecido social. Estamos ignorando uma grande oportunidade de geração de riqueza compartilhada, no sentido material e imaterial, quando não investimos nessas protagonistas. A mulher que empreende está construindo pontes para a sua emancipação e a de gerações passadas, presentes e futuras. Esta força empreendedora feminina é histórica ainda que não seja reconhecida. Reconhecer é, portanto, investir na geração de riqueza, de prosperidade e na redução das desigualdades de um país.
Compreender como opera uma sociedade pelas vias do trabalho é uma proposta já bem teorizada: “Uma forma conveniente de travar conhecimento com uma cidade é procurar saber como se trabalha, como se ama e como se morre” escreveu Albert Camus, filósofo, jornalista e vencedor do prêmio nobel de literatura em 1957, em seu romance A Peste (1947). Os estereótipos qualitativos de gênero, e ainda mais de raça, tendem a reproduzir associações no mundo do trabalho que ampliam a percepção de risco mais do que de oportunidade por parte de investidores, fornecedores, clientes e parceiros quando a força de trabalho é feminina. Isso se traduz em menos acesso a crédito ou investimento, ou mesmo procura pelo mesmo.
Segundo levantamento da Distrito no estudo Female Founders Report 2021, apenas 2,2% de todos os aportes em startups brasileiras foram destinados a negócios inovadores fundados por mulheres no ano de 2020, um ano de grande aquecimento de investimentos no setor. Segundo ainda o Instituto Rede Mulher Empreendedora, de 2020, as mulheres empreendedoras relatam perceber maior dificuldade para empreender que os homens, dado corroborado por aumentos na dificuldade de conciliação entre negócio e família durante a pandemia, por exemplo, percebidos por 17% das empreendedoras entrevistadas contra apenas 8% dos homens.
Isto é revelador e, se permitirmos, libertador. A primeira pessoa a reconhecer o potencial transformador social de mulheres empreendedoras foi o Prof. Dr. e Economista Muhammad Yunus, ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 2006. Yunus é o fundador do microcrédito e, em 1983, fundou o Grameen Bank, instituição que destina crédito a empreendedoras em situação de vulnerabilidade sem as exigências tradicionais dos bancos comerciais. Hoje o Grameen Bank desembolsa 1,5 bilhões de dólares por ano e possui as menores taxas de inadimplência do mercado de crédito. Este movimento vem revelando que através da realização dos seus empreendimentos, a emancipação feminina emancipa também crianças, conhecimentos e outras mulheres.
A estratégia de investir no trabalho das mulheres é coletiva e estrutural. Uma mulher que empreende emancipa também o conceito de cuidado, o retirando dos núcleos familiares e o distribuindo nas relações de trabalho e troca empreendidas por estas donas de negócio. Afinal, não é de saúde e bem-estar que estamos carecendo enquanto sociedade? São as lideranças empresariais e globais femininas que estão desafiando a qualidade do cuidado genuíno nas relações de trabalho, políticas públicas e impactos socioambientais. São estas que estão desafiando a produção de riqueza pelas vias da igualdade e da gestão inovadora.
Mas para além de protagonistas nas esferas corporativas, são protagonistas do trabalho da esfera privada da vida familiar. A economia do cuidado fala sobre o montante de trabalho, majoritariamente realizado por mulheres, de dedicação à manutenção da vida, bem-estar e do meio em que estão inseridas e que não é remunerado nas esferas domiciliares ou mal remunerado. Trata-se de trabalhos relacionados à saúde e bem-estar da família, trabalhos domésticos e cuidados reprodutivos que somam 12,5 bilhões de horas diárias exercidas majoritariamente por mulheres. Este volume, se devidamente remunerado, representaria 10,8 trilhões de dólares anuais, segundo o relatório Oxfam, Tempo de Cuidar. No Brasil, representa 11% do PIB, uma participação maior do que a produzida pela indústria ou pelo agronegócio.
Se existe oportunidade de geração de riqueza via mercados emergentes, como defende o Prof Clayton Christensen, não temos aqui uma oportunidade a ser coletivamente investida? São as chamadas inovações criadoras de mercado, que se desenvolvem em ambientes marcados pela pobreza, desigualdade, falta ou fraqueza de instituições e dados e que promovem não apenas o crescimento de empresas como também a inclusão e a sustentabilidade social. Apenas quatro países no mundo possuem uma economia maior do que os 10,8 trilhões de dólares não pagos às mulheres. Qual seria o real valor dessa economia, já existente porém inviabilizada? Um investimento nas protagonistas que estão afirmando o valor econômico do cuidado na sua ação empreendedora.