“Cartas ao Morcego”: livro revela a urgência de um novo mundo pós-covid image 3 – Ilustração: Raisa Curty
POR – NURIT BENSUSAN, INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA) / NEO MONDO
Publicação da bióloga Nurit Bensusan traz correspondências com o mamífero de asas que se tornou o bode expiatório da pandemia; lançamento acontece nesta quinta-feira (22/7) no canal do YouTube do IEB
Por que escrever cartas para um morcego? Escolher o morcego como destinatário é escolher o mundo. É transcender a ideia de que apenas nós humanos temos o que dizer sobre os destinos desse planeta tão compartilhado.
Essas cartas, escritas no verão pandêmico de 2021, são, entre muitas outras coisas, uma forma de me reconciliar com a compreensão de que a pandemia, que poderia ter sido uma oportunidade para revisitarmos nossas formas predatórias de estar no mundo, não foi…
Escolher os morcegos, responsabilizados muitas vezes pela pandemia, é também escolher o caminho do meio, apostar em uma espécie de elo perdido entre categorias: entre aves e mamíferos; entre seres reais e monstros; entre hospedeiros e vetores. Não há dúvida que voar, quando todos os outros mamíferos não conseguem sair do chão, suscita enorme perplexidade.
Os mistérios que envolvem essa habilidade única são muitos. Os morcegos aparecem no registro fóssil de há cerca de 50 milhões de anos, em muitas partes do planeta, da Europa à Austrália, da Índia ao continente americano. Mas nessa época, já eram muito parecidos com o que são hoje e já voavam. Surge então a pergunta: de onde surgiram os morcegos? Será que sempre foram criaturas únicas ou será que fomos todos mamíferos voadores que, como anjos decaídos, perdemos as asas e nossa capacidade de voar?
Ilustração: Raisa Curty
Os morcegos são seres com uma biologia muito particular. Mamíferos que voam. Os únicos, mas únicos que são muitos: há mais de 1,1 mil espécies, espalhadas por todos os continentes, com exceção da Antártica. Além de muitas espécies, muitos indivíduos: tirando os roedores, os morcegos são os mamíferos mais numerosos do planeta e os que hospedam o maior número de vírus.
Por serem os únicos mamíferos que voam, os morcegos possuem muitas outras modificações genéticas que afetam seu sistema imunológico que, por sua vez, precisou se adaptar a outro ritmo metabólico. O resultado é um conjunto de adaptações que permite que os morcegos convivam bem com vírus mortais para outras espécies.
Uma biologia particular… Mas o que é isso? Particular? Talvez particulares sejamos nós, humanos, prontos para ignorar os riscos que se precipitam sobre nós como espécie. Particular, talvez, seja insistir, mesmo diante dessa pandemia, em tratar o mundo que nos cerca, que chamamos de natureza, como apenas um cenário, com o qual contracenamos. Particular deve ser o que se recusa a ser parte. Particular é o que não entende seus vínculos, suas interfaces, suas fragilidades e sua dependência. Particular parece ser aquele que reduz a possibilidade de interações sociais à sua própria espécie, que acredita que só ela atua e age e que os outros seres são, no máximo, uma parte animada do cenário.
Escrever essas cartas me ajudou também a entender que, mesmo eventos extremos, como uma pandemia global com milhões de mortos, não farão que soluções caiam do céu, prontas, em nosso colo. O que nos aguarda é um processo de construção do presente, entendido como uma máquina de fazer futuros, para que possamos seguir na dança cósmica que é a vida, plural e compartilhada com os outros seres habitantes desse mundo.
O que pode despencar sobre nossas cabeças, como diz o xamã, é o próprio céu, e escorá-lo é o desafio. Fazer com que ele siga ali, nos dando seu azul é a tarefa cotidiana. Embaixo desse azul, essas cartas foram sonhadas, desenhadas e escritas. Embaixo desse azul, respostas foram ansiosamente esperadas. Mas para que elas viessem, foi preciso perceber os sinais, entender a linguagem dos vírus, abrir os sentidos, escancarar o coração e me fundir ao mundo.
É esse o convite que faço aos meus leitores.