Tayassu peccari, popularmente conhecia como queixada – Foto: iStock
POR – LUCIANA CONSTANTINO (AGÊNCIA FAPESP) / NEO MONDO
Estudo conduzido na Universidade Estadual Paulista (Unesp) mostra que grandes mamíferos têm um forte impacto na diversidade de plantas, na produtividade primária e na biomassa vegetal existente nos sub-bosques de florestas neotropicais. Espécies como anta (Tapirus terrestris) e queixada (Tayassu peccari) ajudam a equilibrar áreas com diferentes níveis de produtividade dentro das florestas, como a Mata Atlântica, e estruturam espacialmente as comunidades de plantas.
O trabalho também mostra que esses dois mamíferos herbívoros, considerados “chave”, exercem funções complementares. A anta contribui com a regulação da diversidade de plantas e o queixada com a produtividade, biomassa e densidade de plântulas no sub-bosque. No processo de regulação espacial, a palmeira Euterpe edulis, conhecida como palmito-juçara, desempenha papel essencial, atraindo os animais com sua enorme quantidade de frutos.
De acordo com a pesquisa, publicada na revista científica Perspectives in Ecology and Conservation, esses animais ao consumir as sementes, se deslocar, pisotear o solo e espalhar grande quantidade de fezes e urina têm um forte impacto na floresta, aumentando a produtividade em até 185% em áreas menos produtivas e reduzindo em mais de 190% nos locais mais produtivos. Como resultado, as diferenças de produtividade entre os hábitats são equilibradas.
A anta, na maioria dos casos, engole as sementes praticamente inteiras, mastigando apenas a polpa. Isso faz com que muitas passem quase intactas pelo sistema digestivo do animal, chegando ao solo prontas para germinar. Como geralmente o animal defeca em lugares distantes, leva as sementes de um lado a outro da floresta, mudando a composição e a diversidade das comunidades de plantas.
Já os queixadas mastigam sementes e plantas jovens e, aliado ao pisoteamento, ajudam a reduzir a densidade da vegetação no sub-bosque. Esses processos, combinados com a excreção de fezes e urina, podem ser os responsáveis pelas mudanças na produtividade primária (ou seja, a velocidade de produção de nova matéria vegetal, muito ligada, entre outros, ao fluxo de carbono no ecossistema).
“Ainda pouco explorada e conhecida, essa estruturação espacial é fundamental para compreender quais espécies são as verdadeiras ‘engenheiras’ da floresta, que os cientistas chamam de ‘espécies fundadoras ou chave’. Neste trabalho, vemos como mamíferos estão afetando de diferentes maneiras a dinâmica da floresta. Dependendo do número de palmeiras, eles turbinam ou reduzem a produtividade e afetam a quantidade de espécies, de tal forma que as desigualdades se equilibram”, explica o pesquisador Nacho Villar, primeiro autor do artigo e bolsista de pós-doutorado da FAPESP no Instituto de Biociências (IB-Unesp), em Rio Claro.
Palmeira-juçara – Foto: Parque das Aves/Divulgação
A pesquisa também teve apoio por meio de outros dois projetos coordenados pelo professor do IB-Unesp Mauro Galetti no âmbito do Programa BIOTA-FAPESP (14/01986-0 e 07/03392-6).
“Os censos florísticos mostram que, em florestas neotropicais como a Mata Atlântica ou a Amazônia, espécies de palmeiras são dominantes em termos de abundância. Antas e queixadas estão bem espalhados pelos neotrópicos. Portanto, é provável que os nossos resultados sejam extensíveis a muitas outras florestas do sul e do centro do continente americano”, afirma Villar em entrevista à Agência FAPESP.
O pesquisador também destaca que esse “tripé” entre as duas espécies animais e a palmeira é chave em termos ecológicos para a biodiversidade e produtividade da Mata Atlântica, por isso a importância de não desaparecerem. “É possível que mudanças profundas na produtividade primária causadas pela defaunação de grandes mamíferos tenham um impacto na capacidade de a floresta capturar carbono”, acrescenta.
Segundo o pesquisador, vários estudos têm mostrado que grandes mamíferos podem estimular a produtividade primária em áreas de pradaria dominadas por gramíneas, como savanas africanas, mas os trabalhos do grupo do qual faz parte apontam que isso também pode acontecer em florestas tropicais.
Neste sentido, a pesquisa destaca que a extinção desses grandes mamíferos, a remoção ilegal de palmeiras para consumo humano e o desmatamento podem levar a mudanças importantes na estrutura, biomassa e diversidade das florestas neotropicais.
De acordo com a Fundação SOS Mata Atlântica, o Brasil tem atualmente apenas 12,4% da vegetação original do bioma. Somente no Estado de São Paulo, entre 2019 e 2020, o desmatamento cresceu 406% em comparação ao período anterior – passou de 43 hectares devastados no ano para 218 hectares. No Estado, a anta e o queixada são considerados espécies em perigo de extinção (veja a lista aqui).
“Soubemos em 2019, por informações de um gestor de um parque estadual em São Paulo, que, em uma semana, muitas árvores adultas de palmito foram cortadas. Isso muda a floresta, deixando de existir como a conhecemos. É semelhante às mudanças climáticas: as pessoas têm a impressão de que nada está acontecendo, mas está. É uma tragédia”, diz.
Os resultados da pesquisa foram divulgados em meio às discussões da Conferência das Partes pela Biodiversidade (COP-15), cuja primeira etapa foi realizada virtualmente em outubro e a segunda fase está prevista para 2022. No evento, foi criado um fundo para biodiversidade, que deve permitir a implementação de ações para proteção e recuperação de ecossistemas. Já os impactos das mudanças climáticas e as formas de mitigá-los foram tema de duas semanas de debate durante a COP26, em Glasgow, realizada entre o fim de outubro e início de novembro.
Mata Atlântica – Foto: Pixabay
Acúmulo de conhecimento
Os estudos do grupo de pesquisadores da Unesp vêm sendo realizados há pelo menos dez anos. Resultaram na publicação de outros artigos, entre os quais o que constatou pela primeira vez a importância da anta e do queixada para o ciclo de nitrogênio nas florestas tropicais. O trabalho concluiu que em áreas livres dos animais a quantidade de amônia era até 95% menor, reduzindo a fertilidade do solo. O padrão de interação entre palmeiras e grandes mamíferos no ciclo do nitrogênio se encaixa agora com os resultados da produtividade primária relatados no novo trabalho, reforçando o modelo de “sítios de frutificação”.
Outra pesquisa do grupo já havia apontado o papel de antas e queixadas na diversidade e abundância de espécies vegetais (leia mais em agencia.fapesp.br/31388/), outro ponto confirmado no último paper.
E mais recentemente, também em outubro, artigo assinado por Villar e pela pesquisadora Patrícia Medici mostrou que áreas utilizadas por esses animais na Mata Atlântica apresentaram menor perda de diversidade do que regiões cercadas onde os mamíferos são excluídos, destacando a importância da conservação e reintrodução dos animais como medida de combate contra os efeitos das mudanças globais nas florestas.
Patrícia, que é coordenadora da Iniciativa para a Conservação da Anta Brasileira (Incab) – responsável pelo maior banco de dados sobre a espécie do mundo –, recebeu em 2020 o Whitley Gold Award, prêmio concedido pelo Whitley Fund for Nature.
Método
Para avaliar os efeitos nas comunidades de plantas tropicais e a produtividade primária, o grupo conduziu uma série de experimentos de exclusão de grandes herbívoros replicados em duas áreas de florestas atlânticas: uma sem os animais (defaunada) e outra com eles (não defaunada).
As áreas, no Parque Estadual Serra do Mar, em São Paulo, foram separadas por 15 quilômetros (km) e divididas por uma rodovia (BR-383). Em cada uma delas, 15 pares de parcelas foram monitoradas – incluindo um controle aberto às atividades dos grandes mamíferos e outro fechado. Dentro de cada parcela (aberta e fechada), o dano de mudas artificiais, recrutamento de mudas, biomassa vegetal e riqueza de espécies foram medidos em três subparcelas diferentes de 1 metro quadrado (m2) a cada seis meses. A estrutura da floresta foi medida em um raio de 10 m do centro das parcelas experimentais.
Esse desenho permitiu um duplo controle, possibilitando comparar os efeitos da exclusão nas áreas defaunadas (sem antas e queixadas) com os de locais onde essas duas espécies estão presentes. Os pesquisadores detectaram que animais como cotia, catetos e veados não impactam o ambiente com a mesma intensidade de antas e queixadas.
“No artigo enfatizamos os aspectos espaciais sobre os temporais: como os animais estruturam espacialmente a produtividade primária e a floresta, e não como divergem as comunidades ao longo do tempo”, explica Villar.
Foram encontrados efeitos espacialmente estruturados positivos e negativos dos grandes herbívoros em comunidades de plantas como resultado da interação entre os animais e a densidade de palmeiras em locais não defaunados.
Por outro lado, na floresta defaunada não houve impacto consistente dos grandes herbívoros sobrantes (cotia, catetos, veados) no recrutamento de plantas ou na riqueza de espécies em todo o gradiente de densidade de palmeiras. A atividade dos animais em áreas defaunadas de anta e queixada sempre teve efeitos negativos sobre a produtividade das mudas.
Também foram usadas armadilhas fotográficas, o que permitiu certificar que o queixada desempenhou um papel na modulação do recrutamento e da produtividade das mudas. Já as antas contribuíram para o aumento da diversidade de plantas, desempenhando um papel complementar.
Segundo Villar, os próximos passos dos estudos são analisar a influência dos grandes mamíferos nos ciclos e estudar seu papel nas ligações entre o solo, o sub-bosque e o dossel, além de seu impacto na estrutura vertical e horizontal da floresta e em outros grupos funcionais importantes, tais como invertebrados e patógenos.