ARTIGO
POR – MICHELLE JACOB*, PARA AGÊNCIA BORI / NEO MONDO
“Porque as pessoas não podem pagar por alimentos orgânicos.” Foi assim que, há alguns anos, uma colega de trabalho tentou me convencer de que o debate da comida sustentável não era para o Brasil.
O ano era 2017. Naquela época a cesta básica custava R$ 431,66 contra os R$ 650,50 de 2021. De lá para cá, a inflação, o desemprego e os cortes em políticas públicas de segurança alimentar aumentaram a pobreza no Brasil, colocando-nos novamente no mapa da fome. A pandemia e a consequente crise econômica global agravam o cenário. Hoje, uma em cada duas pessoas no país tem dificuldade de colocar comida na mesa, muitas destas estão em situação de fome. E agora? Já é hora de falar sobre comida sustentável no Brasil?
Talvez você pense como minha colega, que não é hora. Apesar de não concordar, entendo o porquê de algumas pessoas pensarem desta forma. O mercado transmite a mensagem de que a sustentabilidade é um produto reservado às pessoas e nações que podem pagar por ele.
Na década de 80, o relatório “Nosso Futuro Comum” apresentou para o mundo o conceito moderno de sustentabilidade. Volte e leia novamente o título do relatório. Mais recentemente, com o lançamento da Agenda 2030 da ONU, a mensagem central continua sendo clara: “não deixar ninguém para trás”. Para que isso seja possível, as soluções para o futuro sustentável não podem ser tratadas como produto.
O conceito de sustentabilidade apresentado no relatório é fundamentado na satisfação das necessidades do hoje e no compromisso coletivo com as gerações futuras. Como nação, somos vítimas de uma mentira fundamental: a de que não temos o bastante para todos. Nesta lógica, precisamos produzir mais, a todo custo social e ecológico, para garantir a comida na mesa hoje. Pensar no amanhã é privilégio dos que podem pagar por orgânicos.
A questão que se põe é: como garantir o acesso de todos, no presente e no futuro, à comida que seja saudável para as pessoas e para o planeta?
Foto – Pixabay
Atualmente, consolida-se a ideia de que precisamos tomar uma atitude sobre o problema da produção e consumo de carne. As soluções começam a aparecer na forma de produtos: hambúrgueres vegetais, carnes de laboratório. Particularmente sou entusiasta de muitos deles. Como não acredito na epifania vegetariana em nível global, vejo nestes produtos um potencial de reduzir em grande medida o problema do sofrimento animal.
Mas o debate sobre substitutos da carne frequentemente deixa de lado um fator relevante: o acesso. Atualmente, meia dúzia de startups do Vale do Silício dominam a tecnologia de produção de carne cultivada. Essas empresas contam com investimentos dos maiores produtores de carne do mundo, dentre elas Cargill, Tyson e até a nossa velha conhecida JBS.
Os investimentos feitos por essas corporações ocorrem sob a condição de que a propriedade intelectual das patentes seja privada. Isso significa que todas as decisões fundamentais sobre a nossa comida serão tomadas por um punhado de pessoas com o objetivo principal de expandir o lucro de seus investidores. Não preciso contar o que acontece no final dessa história.
No terreno da comida, o acesso depende de reforma agrária com demarcação de terras e renda. São mudanças estruturantes, que levam tempo, mas que não são impossíveis. O Programa Bolsa Família, o Programa Nacional de Alimentação Escolar e o Guia Alimentar para a População Brasileira são provas vivas de que somos capazes de criar soluções públicas para a alimentação sustentável.
Se você está lendo este texto, provavelmente é uma das pessoas que tem a sua próxima refeição garantida. Por isso, sua capacidade de participar da construção do futuro que queremos também começa aí, na próxima refeição. Se puder, reduza o consumo de alimentos de origem animal; diversifique sua dieta com mais alimentos locais, sejam eles plantas, cogumelos, ou algas; valorize o trabalho de agricultores e agricultoras familiares.
Por fim, sua capacidade de participar de forma mais ativa da construção do futuro que queremos também mora no voto. Apoie representantes que defendam expressamente que a forma como produzimos e consumimos comida no nosso país precisa mudar; que não nos transformem em vítimas do engodo produtivista enquanto negociam nossas florestas e nossas vidas; que compreendam que um país rico é um país livre da fome.
*Michelle Jacob é professora do Departamento de Nutrição da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).