Reserva Natural Serra do Tombador, no Cerrado – Foto: Jose Paiva
ARTIGO
Por – Fabiana de Gois Aquino e Marcelo Ayres Carvalho, ambos da Embrapa Cerrados, para Neo Mondo
A visão equivocada de que o Cerrado é uma formação secundária, com aparência degradada, resultante de queimadas e outros distúrbios, ainda prevalece. Ao longo de sua distribuição original, o bioma apresenta paisagens diversificadas, que vão desde formações florestais até vegetações campestres. Os diferentes tipos de vegetação, ou fitofisionomias, convivem lado a lado, separados, muitas vezes, por poucos metros de distância. O conjunto resultante desses diferentes tipos de vegetação produz um grande mosaico, onde coexistem ambientes heterogêneos, que contribuem para que o Cerrado seja um dos ecossistemas brasileiros mais biodiverso.
Os ambientes savânicos e campestres são caracterizados por espécies vegetais de menor porte, como arbustos e herbáceas, que fornecem serviços ecossistêmicos, benefícios que impactam positivamente o bem-estar humano. Esses ecossistemas ocupam, comumente, as áreas de recarga de aquíferos – permitindo que a água penetre no solo por infiltração até alcançar a formação geológica subterrânea capaz de armazenar essa água. Esse processo é fundamental para reabastecer os lençóis freáticos e manter a vazão dos rios, sobretudo na época seca, e como consequência, garantir fonte de água para consumo.
A regulação e a manutenção de água no solo estão intimamente relacionadas à quantidade de raízes finas e à estrutura física dos solos do Cerrado, condições que interferem positivamente na infiltração e na retenção desse recurso. Além disso, essas fitofisionomias têm papel importante na estocagem de carbono no solo, na manutenção da diversidade biológica, como fonte de alimento para a rica fauna do Cerrado, na conservação do solo e na beleza cênica.
Grande esforço de pesquisa já foi realizado para conhecer e caracterizar as espécies arbóreas do bioma Cerrado. É natural que isso tenha ocorrido pelo grande potencial madeireiro e alimentício dessas espécies. No entanto, no contexto da bioeconomia, são diversas as espécies nativas do estrato herbáceo-arbustivo que apresentam potencial ornamental, medicinal, condimentar, melífero, forrageiro, alimentar, dentre outros usos.
Fitofisionomias do Cerrado – Imagem: Felipe Ribeiro e Bruno Teles
O cajuí (Anacardium humile), o bacupari (Salacia crassifolia), os muricis (Byrsonima sp.), os araçás (Campomanesia sp.) são exemplos de frutíferas arbustivas. Outras espécies bastante utilizadas são: baunilha (Vanilla sp.), como especiaria culinária; arnica (Lychnophora sp.), de uso medicinal; flor-do-cerrado (Calliandra dysantha) e as sempre-vivas, com potencial ornamental e artesanal, que são comercializadas em mercados locais. As espécies herbáceas, como cratylia (Cratylia sp.), estilosantes (Stylosanthes sp.) e amendoim-forrageiro (Arachis sp.) e diversas gramíneas (Axonopus, Paspalum, Setaria etc.) apresentam alto potencial para produção de forragem e importante papel no processo de restauração ecológica.
Restauração ecológica dos ecossistemas campestres e savânicos
As formações campestres e savânicas dominavam o Cerrado, alcançando cerca de 60% dos seus 204 milhões de hectares originais. Nesses ambientes, há coexistência de árvores, arbustos e herbáceas. A proporção de plantas arbustivo-herbáceas em relação às arbóreas aumenta exponencialmente das formações florestais para as formações campestres.
Nas florestas, para cada espécie de árvore há cerca de duas espécies arbustivo-herbáceas; nas savanas, para cada árvore há entre 3 e 10 espécies arbustivo-herbáceas. Ou seja, o componente herbáceo e arbustivo é expressivo e diverso e, de forma geral, suas espécies apresentam funções muito importantes para o conjunto do bioma. Negligenciá-lo aumenta os riscos à manutenção da diversidade biológica e das funções ecológicas desempenhadas por esse componente.
Em geral, esse conjunto de espécies está associado à necessidade de um dossel aberto, com alta luminosidade, para o desenvolvimento adequado das plantas. Nos casos de restauração ecológica, privilegiar o plantio de árvores, onde, originalmente, elas não existiam ou ocorriam em baixa densidade, impacta negativamente na diversidade local e, consequentemente, na capacidade de prover serviços ecossistêmicos.
Pesquisas indicam que esse componente apresenta limitado potencial de recuperação via regeneração natural espontânea. Portanto, são necessárias intervenções para promover melhorias nas estratégias de restauração ecológica, que precisam levar em conta as características e os requisitos das espécies arbustivas e herbáceas dos ecossistemas savânicos e campestres.
Com o grande impulso que o processo de restauração ecológica parece tomar e o estabelecimento de toda uma cadeia de valor associada a esse esforço, é importante neste momento ampliar os estudos sobre o componente arbustivo e herbáceo. Há uma vasta oportunidade para a pesquisa científica e a geração de produtos advindos das plantas nativas do Cerrado em diversas cadeias produtivas. Para que isso se torne realidade, a primeira ação é reconhecer e valorizar todas as formações de vegetação nativa do bioma e as espécies que nelas ocorrem, investindo em pesquisa, inovação e uso, considerando seu potencial na bioeconomia, bem como aprimorar técnicas de manejo visando à conservação de áreas naturais e à restauração ecológica.