Jornalista Eliane Brum – Foto: Lilo Clareto
Por – Pedro Alexandre Sanches, para Amazônia Real
Em novo livro, a jornalista Eliane Brum conta dezenas de histórias-exemplos sobre a Amazônia, para onde decidiu se mudar e morar
É desafiadora a leitura de Banzeiro Òkòtó – Uma Viagem à Amazônia Centro do Mundo, da jornalista gaúcha Eliane Brum, que desde 2017 mora em Altamira, no Pará. O livro denuncia as diversas violações territoriais e de direitos na Amazônia, diretamente relacionadas à destruição ambiental provocada por grandes empreendimentos. Na contramão da suposta neutralidade jornalística, Eliane se coloca explicitamente ao lado dos povos amazônicos e da resistência contra a destruição da floresta.
A autora chama o conjunto de habitantes da floresta – indígenas, ribeirinhos, beiradeiros e quilombolas – de “povos-floresta”, como constituintes inalienáveis da natureza amazônica e em confronto com a velha noção autoritária da Amazônia como “deserto verde” ou “deserto humano”, portanto desabitado (segundo a lógica dos colonizadores). “Para os povos originários, não existe a natureza e as pessoas humanas, uma coisa e outra coisa. Há apenas natureza. Os indígenas não estão na floresta, eles são floresta. Interagem com o que os brancos chamam de floresta, como também interagem as pessoas não humanas. A floresta é tudo, o visível e o invisível”, conceitua.
Outra argumentação contundente de Banzeiro Òkòtó apresenta os “convertidos-em-pobres”: desalojados por Belo Monte da floresta e das margens dos rios, onde não são pobres nem ricos, os povos-floresta são atirados às periferias de Altamira, passam a precisar de dinheiro e se tornam, portanto, pobres, não raro miseráveis. O pacote capitalista cai inteiro em suas cabeças: moradia, transporte, emprego, patrão. “Ser rico é não precisar de dinheiro”, argumenta a autora, em formulação aprendida com os povos-floresta. “Antes colhia 400 melancias boas, hoje não consigo comprar uma ruim”, define um ex-beiradeiro atirado à periferia de Altamira, em entrevista à jornalista.
Eliane Brum, também escritora e documentarista, propõe em Banzeiro Òkòtó uma série de inovações ao mesmo tempo linguísticas e conceituais, que ela vai introduzindo aos poucos no texto e passa a adotar a partir de cada explicação. Uma delas é a adoção do gênero neutro em lugar da separação estanque entre feminino e masculino, cujos inconvenientes a jornalista previne logo na primeira página do texto: “Imagino que a maioria vai estranhar e até ficar incomodada no início da leitura, como aconteceu também comigo. Estranhar é preciso”.
Aos povos originários, Eliane dá o nome de “extra-humanes” ou “além-do-humane” (“nossos antepassados são mais antigos do que Jesus Cristo”, delimitam, a certa altura, os Munduruku), Combatendo a separação hierarquizada dos seres vivos entre humanos e animais, a autora rejeita o termo “animais”, que substitui por “não-humanes”. Incomodada com a negativa reluzente em “não-humanes”, troca-a por “mais-que-humanes”. Sobre a hidrelétrica de Belo Monte (cuja cidade mais próxima é Altamira), adota às vezes a terminologia criada pelos deserdados da construção da usina: Belo Monstro. Para a ditadura de 1964, que alguns já tratam como “civil-militar” (e não apenas militar), prefere o termo “empresarial-militar”. Nesse procedimento, desafia dogmas do jornalismo empresarial e coloca-se inequivocamente em um lado da frente da batalha pela preservação de todas as naturezas: Eliane está na Amazônia para se somar a extra-humanes e mais-que-humanes, contra representantes das elites empresariais, agrárias, políticas etc., rotulados por ela de “comedores do planeta”. Sua crítica aos donos do poder é ampla e um tanto indistinta, abrangendo o papa, as religiões neopentecostais, os políticos de qualquer partido ou orientação ideológica e o mundo dito desenvolvido, em especial a Europa e os Estados Unidos. “A parte rica do mundo tem problemas de audição”, escreve. “O problema é que os brancos não compreendem a linguagem dos não-brancos.”
Devastação na Terra do Meio – Foto: Lilo Clareto
No capítulo “A Amazônia É Mulher”, a antiga diferenciação estanque entre feminino e masculino sobrevive, indicando que há muito a caminhar até a superação total das hierarquias, desigualdades e submissões que a língua portuguesa espelha. Numa passagem radiante de Banzeiro Òkòtó, ela apresenta o líder camponês (de pequenos agricultores e pescadores da floresta) que vive um casamento inter-racial, define-se como “de gênero não-binário” e pinta as unhas de azul, numa prova de que por trás da linguagem há um fenômeno concreto, que é conhecido e praticado por habitantes de um lugar considerado atrasado ou parado no tempo pela sociedade tradicional urbana.
Mudança climática
Eliane pontua em seu novo livro que a proposta de sacudir a linguagem para sacudir o que há por trás dela tem precedentes. Lembra que em 2019 o jornal britânico The Guardian anunciou uma eloquente substituição de palavras e termos em seu vocabulário. No linguajar do jornal, mudança climática virou “emergência climática” ou “colapso climático” e aquecimento global trocou de “global warming” para “global healing” – algo como “superaquecimento global”, segundo sua tradução. Junto com o aquecimento do planeta, é imperativo aquecer a percepção geral e individual sobre a emergência. No Brasil, via de regra, o jornalismo mais comercial não tem se mostrado à altura das fortes transformações e modificações de paradigmas que o planeta vive, e que a autora capta antes do paquiderme jornalístico – ou antes que seja tarde demais, como de resto o livro apregoa em toda sua extensão.
E é sobre o lado de cá da sociedade, o lado urbano, que Eliane Brum apresenta momentos de mordaz responsabilização, como na história do grileiro amazônico cuja filha é atriz teatral e promotora de festas modernas e blocos de carnaval em São Paulo. “Meu pai formou esse condomínio há um tempo e deu pra gente de presente”, ela justifica o lote do laranjal que ganhou do pai. A jornalista demonstra, assim, que os destruidores da floresta não são entes invisíveis e podem estar bem mais próximos do que pode parecer. A proximidade se aprofunda quando a autora, despida das camadas e camadas e camadas de proteção oferecidas por megalópoles de São Paulo, tenta alugar uma casa (num condomínio) em Altamira e descobre que o proprietário é o homem que mandou matar a religiosa Dorothy Stang. “Em Altamira, não havia como me livrar do sangue, como eu fazia em São Paulo”, conclui, num daqueles trechos feitos sob medida para brancos de classe média e alta.
Em certas passagens, a prosa de Eliane em primeira pessoa parece tentar dar sentido épico a banalidades que evidentemente são menos interessantes e relevantes que a emergência vivida pela floresta colossal e, por consequência, pelo mundo todo. Nesses momentos, a impressão é a de que a jornalista, por vício profissional ou por outro motivo, cede à tentação de sobrepor sua figura à floresta como protagonista do livro.
Amazônia centro do mundo
A explicação sobre os porquês do título do livro só se conclui ao final de sua leitura. Banzeiro, como Eliane explica logo de início, é, segundo os povos do Xingu, a região onde um rio é mais bravio. “É onde com sorte se pode passar, com azar não. É um lugar de perigo entre o de onde se veio e o aonde se quer chegar”, decifra. Somente quatro capítulos antes do final, vem a explicação do termo òkòtó: na língua ioruba, é “um caracol, uma concha cônica que contém uma história ossificada que se move em espiral a partir de uma base de pilão”. “Amazônia Centro do Mundo é banzeiro em transfiguração para òkòtó”, escreve, para ao final concluir: “Entrelugares é meu lugar de fala”.
Sintonizada no tempo presente, a narrativa guarda momentos de choque, como a presença constante do fotógrafo Lilo Clareto, que acompanhou grande parte da trajetória jornalística da autora (inclusive na mudança para Altamira), assina todas as fotos do caderno de imagem e… morreu de Covid-19 em 2021. No mais, a grande meta cumprida de Banzeiro Òkòtó é reunir um conjunto polpudo de evidências, quando não provas, de que o fim do mundo está realmente próximo, se os seres humanes não se conscientizarem imediatamente de que estão comendo a casa onde moram.
Caderno de fotos de Lilo Clareto que acompanha o livro
Leia um trecho de Banzeiro Òkòtó, de Eliane Brum:
11. onde começa um círculo?
Banzeiro é como o povo do Xingu chama o território de brabeza do rio. É onde com sorte se pode passar, com azar não. É um lugar de perigo entre o de onde se veio e o aonde se quer chegar. Quem rema espera o banzeiro recolher suas garras ou amainar. E silencia porque o barco pode ser virado ou puxado para baixo de repente. Silencia para não acordar a raiva do rio.
Não há sinônimos para banzeiro. Nem tradução. Banzeiro é aquele que é. E só é onde é.
Desde que me mudei para a Amazônia, em agosto de 2017, o banzeiro se mudou do rio para dentro de mim. Não tenho fígado, rins, estômago como as outras pessoas. Tenho banzeiro. Meu coração, dominado pelo redemunho, bate em círculos concêntricos, às vezes tão rápido que não me deixa dormir à noite. E desafina, com frequência sai do tom, se torna uma sinfonia dissonante, o médico diz que é arritmia, mas o médico não sabe de corpos que se misturam. Os médicos dos brancos são obcecados por fronteiras, veem o mundo como os diplomatas europeus, que dividiram a África em uma mesa de negociações na Berlim de 1885. Me dá esse coração aqui, pega o rim para você, em troca desta perna eu te dou o baço e o fígado.
Com esse coração esquecido de bater no ritmo convencional, minha insônia me navega. Meu sangue virou água, e às vezes sinto um peixe fazendo cócegas no meu pâncreas. Outras vezes, toda eu sou envenenada pelo mercúrio que os garimpeiros jogam nas veias do rio e nas suas próprias. Me contorço, viro mutante e ganho guelras podres.
Não aconteceu de repente. Foi acontecendo. Ainda acontece. Nunca mais vai parar de acontecer, acho. A Amazônia não é um lugar para onde vamos carregando nosso corpo, esse somatório de bactérias, células e subjetividades que somos. Não é assim. A Amazônia salta para dentro da gente como num bote de sucuri, estrangula a espinha dorsal do nosso pensamento e nos mistura à medula do planeta. Já não sabemos que eus são aqueles. As pessoas seguem nos chamando por nossos nomes, atendemos, aparentemente estamos com nossas identidades intactas — mas o que somos, já não sabemos. O que nos tornamos não tem nome. Não porque não tenha, mas porque não conhecemos a sua língua.
Se você reparar, todas as minhas metáforas são corpóreas, e nem metáforas são. A Amazônia literaliza tudo. Já não posso ser cartesiana, porque o corpo é tudo e tudo domina. Quem entra na floresta pela primeira vez não sabe o que fazer com os sentidos que sente, com as partes do corpo que desconhecia e que de repente nunca mais a deixará. Em algum momento, adoecem, porque o corpo da cidade, acostumado a fingir que não existe, para poder se robotizar diante do computador, não sabe o que fazer de si.
Esse corpo se ocupava em dez por cento, porque reprimido de tudo, e agora todos os cem por cento lhe chegam de uma vez. E sua de pingar no chão e coça de picadas de piuns e se corta nos tucuns e se arrepia com a água do rio e se encharca de desejo por corpos que não estavam no cardápio. É muito de um tudo de repente. As pessoas da cidade passam mal, se sentem doentes nas primeiras incursões na Amazônia, porque têm overdose de corpo. Acham que é malária o que é tesão por um corpo que não se sabia.
Aconteceu comigo mais de duas décadas atrás, no final dos anos 1990, nas minhas primeiras vezes na Amazônia como repórter. Eu ia e vinha. E quando voltava para Porto Alegre, da primeira vez, ou para São Paulo, em todas as outras, me chaveava por dentro até voltar a enquadrar meu corpo no espaço de apartamento em que ele se conformava por ter decorado a planta. Meu corpo virava um dois-quartos de classe média, mas o bicho que mora lá no fundo bem fundo tinha provado. E não se deixava esquecer. Então eu voltava para a Amazônia. Ia e vinha, ia e vinha curiosa de mim. Um dia, em janeiro de 2016, eu caminhava com uma amiga pela cidade de Altamira, no Pará. Era estação de chuva, mas estava seco. Os Yudjá da Volta Grande do Xingu chamaram aquele de O Ano do Fim do Mundo. Conto o porquê em outra volta do banzeiro, caso não me afogue antes. É fácil se afogar na escrita. Difícil é não se afogar.
Eu ciceroneava minha amiga, a psicanalista Ilana Katz, e um pequeno grupo de pessoas em encontros com os movimentos sociais e ambientais de Altamira. Nosso desejo era criar uma experiência clínica de escuta do sofrimento dos refugiados de Belo Monte, a hidrelétrica que matou uma parte do corpo do Xingu. Desde que a barragem interditou o rio, o Xingu carrega pedaços mortos. Em alguns trechos, arrasta penosamente braços e pernas sem movimento, que chamam de reservatórios ou lagos artificiais. Em outros, seu corpo seca e universos inteiros são asfixiados, como na Volta Grande do Xingu. Os peixes tentam nadar e se reproduzir, mas acabam morrendo, somando-se aos outros cadáveres. A morte não gosta de morrer sozinha. Vai morrendo em cadeia. A morte não sofre de agorafobia, ela gosta de toda gente, de peixe, carapanã, árvore, nós.
Disse a minha amiga, ali, entre as ruínas da mais violenta cidade amazônica, com o sol pesando sobre a cabeça como uma coroa de chumbo, Vou me mudar para Altamira. Nem eu mesma sabia de onde vinha aquela voz. Mas foi dito. E o que é dito passa a existir.
Banzeiro Òkòtó – Uma Viagem à Amazônia Centro do Mundo. De Eliane Brum. Companhia das Letras, 294 pág., R$ 70.