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Por – Bruno Fonseca, Agência Pública/Repórter Brasil
Luiz Meirelles, ex-gerente de toxicologia da Anvisa, critica o chamado “Pacote do Veneno” e afirma que enfraquecer a agência coloca Brasil na contramão do mundo
Há 20 anos um projeto anda pelos corredores Brasília: é o PL 6.299, proposto em 2002 pelo ex-senador e ex-ministro da Agricultura Blairo Maggi (PP-MT), na época, suplente do falecido senador Jonas Pinheiro (DEM-MT). O texto vintenário — que tramita hoje apensado a mais de 40 outros projetos — traz uma série de alterações na fiscalização, autorização, controle e até mesmo a propaganda de agrotóxicos.
Agora, após duas décadas, o PL está mais perto de ter um desfecho. Um requerimento de urgência de dezembro de 2021 está na mesa da Câmara, colocado na ordem do dia de 9 de fevereiro pelo presidente da casa, o deputado Arthur Lira (PP). Caso o requerimento seja votado e aprovado, o PL 6.299 passa a tramitar de prioridade para urgência, o que significa que todo o restante da tramitação pode ocorrer com a votação dos deputados no plenário, sem necessidade de mais idas e vindas em comissões.
Os defensores da proposta afirmam que ela “desburocratiza” e “moderniza” a legislação sobre agrotóxicos no Brasil. “Queremos facilitar o registro de novos produtos, mais seguros para a sociedade e mais tecnológicos também”, afirmou o deputado Luiz Nishimori (PL-PR), da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA). “Precisamos deles da mesma forma que precisamos de remédios”, afirmou. O requerimento de urgência do ano passado foi apresentado por Nishimori junto a políticos do PL, PSL, DEM, MDB, PTB, PSD e NOVO.
Para os críticos, o projeto ganhou um apelido: “Pacote do Veneno”. Isso porque, ao aumentar os poderes do ministério da Agricultura e reduzir os da Saúde e Meio Ambiente, pesquisadores e ambientalistas prevêem que fatores econômicos irão pesar mais que os de saúde pública e ambientais na decisão de quais agrotóxicos serão liberados no Brasil. O Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva, o Incra, manifestou-se contrário ao projeto, apontando riscos à saúde da população.
É essa a visão do ex-gerente da Anvisa e pesquisador da Fiocruz e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Luiz Claudio Meirelles. Em entrevista para a Agência Pública, ele, que é um crítico aberto do PL 6.299, afirma: “caso o PL seja aprovado, a Anvisa pode apagar de vez a área que atua com agrotóxicos dentro da instituição”.
Meirelles cita o caso do paraquate, substância associada ao desenvolvimento de mutações genéticas e à doença de Parkinson e proibida pela Anvisa em 2017 — a proibição passou a valer em 2020. Segundo ele, caso o PL 6.299 já fosse lei à época, o Ministério da Agricultura poderia manter a substância liberada no Brasil. “A Agricultura simplesmente poderia dizer não para a Anvisa. O argumento econômico poderia ser o único a decidir a proibição, diz. Reportagem da Pública mostrou que 138 morreram no Brasil em uma década por intoxicação pelo paraquate.
Leia a entrevista completa a seguir.
Luiz Claudio Meirelles é ex-gerente da Anvisa e pesquisador da Fiocruz e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) – Foto: Divulgação
Quais as principais mudanças que o PL 6.299 pode trazer ao controle dos agrotóxicos no Brasil, caso aprovado no Congresso?
A mudança mais importante é tirar do Ministério da Saúde e do Meio Ambiente o poder de veto de agrotóxicos, que passa apenas para o da Agricultura. Hoje, pela legislação, os três ministérios têm o mesmo peso nos processos de registro de produtos no país. Caso o produto ofereça um perigo à saúde humana ou ambiental — que são análises específicas das áreas da Saúde e do Meio Ambiente — esses ministérios podem vetar o registro. O PL concentra o poder na Agricultura e transforma os outros órgãos em apenas participantes do processo.
Outro retrocesso, também grave, é a questão da flexibilização dos critérios de proibição de registro. Hoje, com base em estudos experimentais, se o produto for carcinogênico, mutagênico, causar danos hormonais, ele não pode ser registrado no país. Com o PL, estão se propondo metodologias que, na prática, dificilmente vão proibir esses tipos de produtos. É o oposto das mudanças que a Europa passou há alguns anos. Vamos adotar um critério que países europeus adotavam anteriormente e que não impedia que esses produtos perigosos chegassem ao mercado.
O PL também reduz o poder dos estados, a possibilidade de atuarem no setor de fiscalização dos agrotóxicos. É um efeito em escala, você tem uma série de medidas incorporadas no PL que irão trazer um prejuízo da saúde humana e ambiental.
Mesmo sem a aprovação do PL 6.299, a Anvisa vem registrando recordes de registros de produtos agrotóxicos. O que muda na prática caso o projeto seja aprovado?
Sim, já existem muitas alterações atuais na legislação que acabam flexibilizando procedimentos para o registro de novos agrotóxicos. O PL está para ser votado, mas parte dele já foi acontecendo nos últimos quatro anos. Por exemplo, a Anvisa mudou a portaria da avaliação toxicológica [veja a reportagem]. No ano passado, houve o decreto presidencial que flexibilizou parte do processo [veja a reportagem]. Agora, quando se tem uma Lei, torna-se mais difícil das mudanças serem derrubadas. E, por outro lado, a política nacional de redução do uso de agrotóxicos não é votada no Congresso.
Em 2021, Bolsonaro aprovou decreto que altera Lei dos Agrotóxicos permitindo que pesticidas que causam doenças como câncer possam ser liberados no país caso exista um “limite seguro de exposição”; medida também acelera processo de aprovação das substâncias – Foto: Alan Santos/PR
O senhor foi gerente na Anvisa por mais de uma década. Como era essa pressão em relação à aprovação de agrotóxicos na época? E o que o senhor percebe que tenha mudado nas práticas da agência hoje?
A pressão na Anvisa sempre foi grande e constante. De uma forma geral, isso acontece em todas as agências regulatórias deste país, por vezes a partir de interesses não necessariamente republicanos, mas principalmente de viés econômico. Quando se tem órgãos fortalecidos e organizados, é possível enfrentar essa pressão.
O que noto recentemente é que o registro se tornou uma questão central na agência, visto que a Anvisa tem autorizado o registro de tantos agrotóxicos. Mas, ao mesmo tempo, além do aumento do registro, vejo uma menor presença dos mecanismos de controle.
O PARA (Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos), por exemplo, mudou a metodologia de interpretação dos resultados de alimentos contaminados. Falta fiscalização na indústria, para evitar que o fabricante mude algum componente ou proporção para tornar o agrotóxico mais produtivo e, com isso, altere o risco do produto. Falta também monitoramento de água. E até mesmo nos alimentos, há pesquisas que mostram inclusive alimentos ultraprocessados com resíduos de agrotóxicos.
O registro é só um passo. Estamos assistindo a um enfraquecimento de todo o sistema de controle.
Como ficaria a Anvisa caso o PL seja aprovado? Afinal, sem poder de decisão, como a agência manteria sua área de fiscalização de agrotóxicos?
Com o PL, se a Anvisa não puder apitar com relação a novos produtos ou à reavaliação dos que já estão no mercado, imagino que o órgão irá investir cada vez menos nessa área. Caso o PL seja aprovado, a Anvisa pode apagar de vez a área que atua com agrotóxicos dentro da instituição. Sem poder de decisão no registro, na fiscalização, teremos um processo natural de abandono dessa área na instituição. Hoje, ao menos, a Anvisa está fazendo as avaliações, tem a obrigação de cumprir com protocolos internacionais…
Com a mudança na Lei, a Anvisa será apenas cosmética. Ela irá enviar um parecer técnico e o ministério da Agricultura pode dizer que sim ou não, independente das conclusões e qualidade desse estudo. E quando se esvazia uma área de poder, dificilmente a instituição irá investir nisso — principalmente uma que já está sobrecarregada, como a Anvisa, o que ficou nítido com a pandemia. Se um órgão não tem poder decisório, o trabalho em uma área se torna apenas um custo.
Requerimento de urgência de dezembro de 2021, que visa acelerar tramitação do PL.6.299, foi criticado por deputados contrários à base do governo – Foto: Michel Jesus/Câmara dos Deputados
Caso o PL seja aprovado, o que ocorrerá com produtos que atualmente são proibidos ou restritos pela Anvisa? O paraquate, por exemplo, que foi proibido em 2017. Caso o PL estivesse aprovado na época, ele poderia ter permanecido livre para o uso?
Sim. Se o PL já tivesse sido aprovado, a Agricultura simplesmente poderia dizer não para a Anvisa. O argumento econômico poderia ser o único a decidir a proibição. Não adiantaria ter um relatório extenso, como foi feito no caso do Paraquate, que a Agricultura poderia não levá-lo em consideração.
Num estado democrático, cada instituição pode e deve ter sua responsabilidade, e atuar dentro da sua área de conhecimento, mesmo que isso gere disputas. Um esvaziamento do poder da Anvisa, que é na realidade do Ministério da Saúde, é muito ruim para o Estado.
E já que estamos falando do Paraquate, a aberração no Brasil está em um nível que há a possibilidade do Congresso Nacional votar a permanência do Paraquate, proibido em vários países no mundo. Há um PL que pretende mantê-lo à revelia da posição da Anvisa.
Assistimos na pandemia diversos embates entre o presidente Bolsonaro e a Anvisa, nos quais a agência rebateu o presidente para manutenção da vacinação, que é uma ação de saúde pública. Em que medida o PL, ao enfraquecer o poder de decisão da Anvisa, também enfraquece a condução de políticas de saúde pública no Brasil?
É um retrocesso. No mundo, os países mais avançados nessa discussão vem colocando poder no Ministério da Saúde, é assim na Europa, por exemplo. Afinal, por mais que você queira produzir, não adianta ter produção com uma população doente ou com danos sérios ao meio ambiente. É uma perda inclusive do ponto de vista econômico, que [os defensores do PL] não estão vendo. Registrar um produto que se sabe ser venenoso, que pode gerar danos anos depois, é um risco. Ainda mais para um país que está entre um dos maiores consumidores de agrotóxicos do mundo. O ideal é que se trabalhe com tecnologias que não comportem esse perigo.
Aprovar novos produtos que oferecem riscos à saúde envolve custos como programas de monitoramento, ações fiscais, que oneram o Estado. Vamos colher os frutos dessas escolhas no futuro. A gente sabe quanto custa um câncer para o indivíduo, e quanto custa para o estado brasileiro, um tratamento que leva anos e muitas vezes se encerra com os óbitos. O mundo está caminhando para um lado, o Brasil está caminhando para o outro diametralmente oposto.