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POR – CELSO MORETTI* E HUGO MOLINARI*, PARA NEO MONDO
Talvez tenha passado despercebido por muitos que a ciência brasileira deu um grande passo no final do ano. Em um trabalho inédito no planeta, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) teve aprovadas pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) duas variedades de cana-de-açúcar para produção de etanol resultado da edição genômica de plantas. São as variedades Cana Flex I e a Cana Flex II, que apresentam, respectivamente, maior digestibilidade da biomassa e maior concentração de sacarose nos tecidos vegetais, o que vai garantir a produção de um bioetanol de melhor qualidade e permitir que o bagaço seja melhor aproveitado na alimentação animal. Mais que isso, é uma nova etapa que se inicia na pesquisa brasileira com impacto direto na produção de alimentos e na sustentabilidade do agro.
A Cana Flex I e a Cana Flex II são os primeiros materiais editados no Brasil aprovados pela CTNBio. Flex I é fruto do silenciamento do gene responsável pela rigidez da parede celular da planta. Essa estrutura foi modificada e apresentou maior “digestibilidade”, ou seja, maior acesso ao ataque de enzimas durante a etapa da hidrólise enzimática, processo químico que extrai os compostos da biomassa vegetal. Já a segunda variedade, Flex II, foi gerada por meio do silenciamento de um gene nos tecidos da planta, o que ocasionou um incremento considerável na produção de sacarose. Os materiais Flex I e II editados estão em fase de estudos em casa de vegetação e estão sendo multiplicados para a condução de experimentos a campo.
Esta é a primeira entrega para o agronegócio brasileiro de variedades editadas, que foram consideradasnão transgênicas pela CTNBio. Representa um salto no conhecimento científico agropecuário tão importante quanto a descoberta da Fixação Biológica do Nitrogênio (FBN) desenvolvida também pela Embrapa e que permitiu que o nitrogênio disponível no ar fosse fixado pelas plantes, em um processo totalmente biológico que permite ao Brasil economizar bilhões de dólares todos os anos em fertilizantes.
As novas variedades de cana foram obtidas com o uso da tecnologia CRISPR, uma ferramenta de baixo custo que não envolve a transferência de genes de um organismo para outro. O CRISPR funciona como uma espécie de corretor ortográfico onde os genes do DNA de uma espécie são editados. Esta é uma das principais vantagens em relação aos transgênicos: ao se obter um organismo editado por meio de edição gênica deixam de ser necessárias as etapas de aprovação regulatória. Há segurança e uma economia de anos de pesquisa e de recursos financeiros que chegam às centenas de milhões de reais.
Nos últimos 25 anos, a adoção de técnicas biotecnológicas inovadoras impactou positivamente diversos setores do agronegócio brasileiro. De 1998 a 2021, 206 produtos geneticamente modificados foram aprovados no país, incluindo plantas, vacinas, microrganismos e insetos. O Brasil soube utilizar muito bem as possibilidades oferecidas pela ciência, mas o desenvolvimento e aprovação regulatória de organismos geneticamente modificados (OGM) requer grande investimento financeiro, criando um mercado mais propício aos grandes grupos internacionais.
O desenvolvimento da técnica de edição de genomas por Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna, premiadas com o Nobel em 2020 foi um marco na biotecnologia e, desde então, vários grupos no mundo têm buscado a aplicação desta técnica na agricultura pelo fato de não produzir um organismo transgênico. No contexto da agricultura brasileira, é fundamental que instituições públicas incorporem a tecnologia CRISPR/Cas de edição de genomas nos programas de melhoramento, seja ele vegetal, animal ou com microrganismos.
Desde 2018, a Embrapa desenvolve o projeto CRISPRevolution para produção de cana-de-açúcar, soja, milho e feijão editados em relação a diversas características de interesse.
Cientistas trabalham, por exemplo, na redução dos fatores antinutricionais e tolerância à seca na soja. No milho, o foco é a melhoria da digestibilidade da biomassa e tolerância à seca. No feijão, os pesquisadores esperam diminuir o escurecimento do tegumento e aumentar a tolerância do grão à seca. Por sua vez na cana-de-açúcar, busca-se o aumento da digestibilidade da biomassa, da sacarose nos tecidos vegetais, com maior tolerância à seca e resistência a herbicidas. E vem muito mais pela frente. Estes são apenas os primeiros passos nessa nova fase muito promissora para avanços significativos em várias frentes e em diferentes produtos agrícolas.
A adoção da edição genômica torna nosso mercado de cultivares mais justo, igualitário e competitivo, uma vez que empresas nacionais públicas e privadas passam a ter condições de participar da mesma forma que as grandes multinacionais. Trata-se de uma ferramenta que vem para revolucionar os programas de melhoramento genético como passa a ocorrer com a cultura da cana que recentemente incorporou ferramentas biotecnológicas como a tecnologia Bt para resistência a insetos-praga.
São infinitas possibilidades de uso, permitindo que nossos programas de melhoramento aumentem cada vez mais o teto produtivo de maneira sustentável.
A boa notícia do final do ano é que nossa pesquisa agrícola pública segue na fronteira do conhecimento. O investimento permite levar soluções cada vez mais criativas e eficazes para o produtor brasileiro. Ganha a ciência, ganha a sociedade.
*Celso Moretti, presidente da Embrapa
*Hugo Molinari, pesquisador da Embrapa Agroenergia e coordenador das pesquisas da Embrapa com edição genômica