Pela legislação atual, as empresas do setor de óleo e gás são obrigadas a investir entre 0,5% e 1% da sua receita bruta em projetos de pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico – Foto: André Motta de Souza / Agência Petrobras
POR – HERTON ESCOBAR, PARA O JORNAL DA USP / NEO MONDO
Medida provisória desobriga empresas do setor de óleo e gás a investir parte dos seus lucros em ciência e tecnologia. Texto ainda precisa ser votado no Senado até 11 de agosto
O processo de sucateamento do sistema nacional de ciência e tecnologia está prestes a ganhar um novo significado. Neste caso, literal. A Câmara dos Deputados aprovou na terça-feira, 2 de agosto, a Medida Provisória 1.112/2022, mais conhecida no meio científico como “MP da Sucata”, que redireciona recursos legalmente destinados à ciência para o financiamento do desmanche de caminhões velhos.
Pela legislação atual, em vigor desde 1997 (Lei 9.478/97), as empresas do setor de óleo e gás são obrigadas a investir entre 0,5% e 1% da sua receita bruta em projetos de pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico, como contrapartida ao direito de exploração das reservas de óleo e gás do País. Em 2021, segundo dados da Agência Nacional do Petróleo (ANP), essa regra injetou mais de R$ 3 bilhões no sistema nacional de ciência e tecnologia, em investimentos voltados para projetos de interesse da própria indústria petrolífera, realizados em parceria com universidades e outras instituições públicas de pesquisa.
O que a “MP da Sucata” faz é acabar com essa obrigação, autorizando as empresas do setor a redirecionar esses recursos para um novo Programa de Aumento da Produtividade da Frota Rodoviária no País (Renovar), com a finalidade de “promover a atividade de desmonte ou de destruição como sucata dos veículos pesados em fim de vida útil”. Em outras palavras: em vez de investir obrigatoriamente na produção de ciência e tecnologia, as empresas poderão usar esses recursos para financiar a produção de sucata.
“Trata-se de uma ameaça de destruição de uma política pública exitosa, que já viabilizou marcantes conquistas tecnológicas, com importantes consequências econômicas e estratégicas para o País”, destacaram as principais organizações da área de ciência e tecnologia do Brasil, em uma carta conjunta enviada ao Parlamento, no início de abril. “Graças à Lei 9478/97, foram construídos mais de 150 laboratórios, distribuídos pelo país, e firmados convênios e contratos com mais de 200 universidades e institutos de pesquisas; adquiridos equipamentos modernos, empregando pessoal altamente qualificado”, continua a carta.
Uma das principais conquistas tecnológicas anotadas nesse período foi o início da exploração das reservas de óleo e gás em altas profundidades, na camada de pré-sal, pela Petrobras, o que permitiu aumentar consideravelmente a produção de combustíveis e a segurança energética do País — usando ciência e tecnologias desenvolvidas no Brasil.
Apesar dos apelos da comunidade científica, a MP foi aprovada na Câmara dos Deputados com uma votação expressiva (297 votos a favor, 116 contra). Em vigor desde 1º de abril, a medida precisa ser aprovada no Senado até 11 de agosto para se tornar lei. (As Medidas Provisórias do poder Executivo têm validade automática de até quatro meses, contados a partir da sua publicação no Diário Oficial da União. Nesse período, precisam ser chanceladas pelo Congresso, ou perdem validade.)
“Essa Medida Provisória simboliza o desprezo de grande parte do Congresso Nacional pelo Brasil”, disse ao Jornal da USP o presidente da Conselho Nacional das Fundações de Apoio às Instituições de Ensino Superior (Confies), Fernando Peregrino, que tem sido uma das principais lideranças à frente desse tema em Brasília. “Ninguém que goste do País ameaça a soberania dele em troca de benesses momentâneas”, completou. “Aposto que muitos que votaram a favor da MP não o fizeram por convicção do que estavam fazendo, mas por mera submissão. Foi um atentado à autonomia tecnológica do País, feito por aqueles que deveriam defendê-la.”
Para a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), trata-se de uma “medida eleitoreira”. “É visível o interesse do governo em reconquistar o apoio da categoria profissional dos caminhoneiros, que em 2018 o apoiou, e depois se decepcionou com suas políticas erráticas e com um reajuste dos combustíveis”, disse a entidade, em nota divulgada nesta quarta-feira.
Renovação da frota
O propósito da Medida Provisória, em suma, é promover a renovação da frota de veículos pesados do Brasil, substituindo caminhões velhos por veículos mais novos, mais eficientes, mais seguros e menos poluentes. Para isso, cria o Programa Renovar, que propõe usar o mercado de sucata como um mecanismo de incentivo econômico à renovação. “A partir dessa premissa o programa estabelece mecanismo que visa viabilizar o desmonte ou destruição, como sucata, de caminhões em fim de vida útil. O proprietário terá seu bem adquirido e direcionado a uma empresa de desmontagem, que dará destinação final”, diz o Sumário Executivo da MP 1.112, publicado no site do Congresso Nacional.
A ideia de renovação da frota é boa e pode trazer benefícios significativos, tanto do ponto de vista ambiental quanto econômico e de segurança nas estradas — se for bem planejada e bem executada —, diz o professor Edmilson Moutinho dos Santos, do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP. O problema maior da MP, diz ele, está na forma de financiamento: “Um programa como esse jamais deveria ser financiado com recursos que, originalmente, se destinam à pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação. Essa solução é totalmente contraditória”, pontua Santos, que é coordenador do Programa de Formação de Recursos Humanos em Petróleo e Gás Natural do IEE-USP e do programa de Advocacy do Centro de Pesquisa para Inovação em Gases de Efeito Estufa (RCGI), sediado na Escola Politécnica (Poli) da USP.
“O problema de cortar verbas de ciência e tecnologia em um momento é que o impacto negativo perdura por muitos anos. A curva de retomada é sempre longa, uma vez que se desmobilizam equipes e se quebra a continuidade dos laboratórios”, avalia o professor da Poli e diretor de Inovação do RCGI, Gustavo Assi. “A produção de conhecimento científico não é como uma lâmpada que se liga e desliga para ter iluminação instantânea. Quando se apagam as luzes de uma linha de pesquisa, anos se passarão no escuro até que ela se estruture novamente. Neste momento perdemos protagonismo e ficamos para trás. Como consequência, passamos a importar tecnologia que poderíamos ter produzido nacionalmente.”