Nas arcadas do prédio da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo manifestos em defesa da democracia e justiça – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
POR – HERTON ESCOBAR, JORNAL DA USP / NEO MONDO
Milhares de pessoas lotaram a praça e o interior da escola do Largo do São Francisco para acompanhar a leitura das cartas que pedem respeito ao processo eleitoral e ao Estado Democrático de Direito. Evento reuniu representantes de todos os setores da sociedade, desde grandes empresários a sindicalistas, juristas, lideranças indígenas, acadêmicos e políticos
Quarenta e cinco anos depois da leitura da Carta ao Brasileiros pelo professor Goffredo da Silva Telles Júnior, que marcou um ponto de virada no combate à ditadura militar, as arcadas do prédio da Faculdade de Direito da USP foram, mais um vez, palco de um ato histórico em defesa da democracia, no dia 11 de agosto, data que marca os 150 de criação dos cursos jurídicos no Brasil.
Milhares de pessoas lotaram as dependências da escola, no Largo São Francisco, para ouvir a leitura de duas novas cartas: o manifesto Em Defesa da Democracia e Justiça, subscrito por 107 entidades das mais variadas matizes políticas, econômicas e sociais — incluindo desde a elite do empresariado nacional até centrais sindicais, universidades, organizações científicas, ambientalistas e de defesas dos direitos humanos —, e a Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito!, redigida por um grupo de professores e ex-alunos do Direito da USP, que, na noite do próprio dia 11, superou a marca de 1 milhão de assinaturas.
A primeira foi lida no grande Salão Nobre da faculdade pelo advogado e ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, precedido por uma série de oradores que bradaram em defesa da democracia, das urnas eletrônicas e do processo eleitoral. “As eleições já têm um vencedor: o sistema eleitoral brasileiro”, discursou enfaticamente o diretor da Faculdade de Direito, Celso Fernandes Campilongo, diante de um anfiteatro lotado. À esquerda e à direita, dezenas de autoridades do mundo político, acadêmico e empresarial conferiam peso às suas palavras. Do lado de fora de prédio, milhares de pessoas acompanhavam tudo por um telão, instalado no Largo São Francisco.
A abertura do evento coube ao reitor, Carlos Gilberto Carlotti Junior, que falou em nome não apenas da USP, mas de todas as universidades públicas do Estado de São Paulo. “Estamos aqui, em união, para defender a democracia. Estamos aqui para defender a legislação eleitoral, a Justiça Eleitoral e o sistema eleitoral com as urnas eletrônicas. Que a vontade do povo brasileiro seja respeitada e seja soberana”, afirmou (leia aqui o discurso na íntegra).
Ao lado dele, a vice-reitora, Maria Arminda do Nascimento Arruda, não escondia a emoção. “Há muito tempo não vejo uma mobilização dessa natureza no Brasil. Há muito tempo não vejo tantas figuras centrais da sociedade civil se unindo em nome de um ideal maior, que são os direitos democráticos e a permanência da democracia. Estou de fato muito emocionada”, disse ela ao Jornal da USP, com lágrimas nos olhos.
A lista de oradores foi eclética, incluindo economistas, juristas, sindicalistas, estudantes e representantes de movimentos sociais. “Essa carta não define classe social, porque é plural. Ela não define gênero, porque é plural. Ela não tem religião, porque é plural, assim como é, também, a nossa nação laica. Ela não tem partido político, porque é plural”, discursou o secretário-geral da União Geral dos Trabalhadores (UGT), Francisco Canindé Pegado. “Ela não é um documento partidário, mas também não é um bilhete ou uma cartinha, como alguém insinua”, continuou ele. “Respeitem essa carta.” (A íntegra do documento pode ser vista aqui.)
Ambas as cartas — tanto a das entidades quanto a da Faculdade de Direito da USP — buscam se contrapor às reiteradas investidas feitas pelo presidente Jair Bolsonaro e seus correligionários contra o sistema eleitoral, contra as instituições e contra o Estado Democrático de Direito. O nome do presidente, porém, não é citado nos documentos nem foi mencionado nominalmente ao microfone durante o evento, que transcorreu sem incidentes.
“É um momento muito importante porque se forma aqui um grande arco em defesa da democracia, que compreende toda a sociedade brasileira”, disse ao Jornal da USP o ex-ministro da Justiça e professor aposentado da USP, Miguel Reale Júnior. “É a sociedade brasileira mostrando que não vai admitir retrocessos democráticos. É um momento que sinaliza a quem pretender retrocessos e medidas autoritárias que não passará”, completou o jurista, que foi um dos autores do pedido que levou ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016, e que defende agora, também, o impeachment do presidente Jair Bolsonaro.
“Este momento simboliza esperança”, disse a cientista Helena Nader, presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC) — uma das entidades signatárias da carta. “Esperança de que juntos vamos voltar a ter o Brasil que todas as brasileiras e brasileiros merecem: um Brasil com democracia plena para todos.”
Após a leitura do primeiro documento no anfiteatro do Salão Nobre, o público (de aproximadamente 800 convidados) foi convidado a se deslocar para o pátio central da faculdade, para acompanhar a leitura da Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito!.
Lançado publicamente em 26 de julho, com cerca de 300 assinaturas iniciais, o documento rapidamente viralizou e ganhou apoio em massa da sociedade, transformando a Faculdade de Direito da USP no epicentro de um novo movimento em defesa da democracia. O pátio central, mais conhecido como Pátio das Arcadas, ficou novamente lotado. Foi exatamente ali que Goffredo da Silva Telles Junior leu a histórica Carta aos Brasileiros, em 8 de agosto de 1977, pedindo o fim da ditadura e o retorno do Estado Democrático de Direito.
“Num Estado Democrático de Direito, o direito controla e dosa o uso da força. A única força que pode dizer algo a respeito do processo eleitoral brasileiro é a força do eleitor, a força do brasileiro, e de ninguém mais”, discursou, novamente, o diretor Campilongo. Acima dele, uma grande faixa amarela conclamava em letras maiúsculas: ESTADO DE DIREITO SEMPRE!
A carta foi lida por quatro oradores, três mulheres e um homem, acompanhados de um músico ao violão: as professoras Eunice Prudente, Maria Paula Dallari Bucci e Ana Elisa Bechara, e o professor Flavio Flores da Cunha Bierrenbach, que participou da confecção da carta de 1977. “A semente plantada rendeu frutos. O Brasil superou a ditadura militar. A Assembleia Nacional Constituinte resgatou a legitimidade de nossas instituições, restabelecendo o Estado Democrático de Direito com a prevalência do respeito aos direitos fundamentais”, diz o novo manifesto.
“Ao invés de uma festa cívica, estamos passando por momento de imenso perigo para a normalidade democrática, risco às instituições da República e insinuações de desacato ao resultado das eleições. Ataques infundados e desacompanhados de provas questionam a lisura do processo eleitoral e o Estado Democrático de Direito tão duramente conquistado pela sociedade brasileira. São intoleráveis as ameaças aos demais poderes e setores da sociedade civil e a incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional”, continua a carta. (Leia a íntegra e assine o documento aqui.)
A ex-senadora e ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, foi uma das personalidades políticas presentes no evento. Ao falar com o Jornal da USP, ela louvou o movimento iniciado pela Faculdade de Direito e fez uma analogia carnavalesca: “Isso aqui é só a comissão de frente que está entrando na avenida, e isso não vai parar. É um estado de vigilância ativa, permanente, em defesa da democracia”, disse.
“A maior parte do tempo você ouve falar em setor público e setor privado, mas há momentos em que há questões tão importantes que quem se levanta para defendê-las é o setor plural”, continuou ela. “E é essa força que está aqui dizendo: que neste momento quem deve ser eleito não é só um partido ou um presidente, é a própria democracia.”
Faltando dois meses para as eleições de outubro, a expectativa dos organizadores, assim como em 1977, é que as cartas mobilizem e unifiquem a sociedade em torno de um objetivo comum, independentemente de preferências políticas, ideológicas ou partidárias. “É uma posição coletiva, de várias correntes do pensamento, que querem democracia no País, que querem eleições livres, e que não aceitam nenhuma volta ao passado”, disse o reitor Carlotti ao Jornal da USP. “Isso é muito importante, e que bom que a USP liderou esse movimento.”