Festa do Bonfim – Foto: Atílio Avancini
POR – LEILA KIYOMURA, DO JORNAL DA USP
Com essa convicção, professores da USP sugerem projetos para o Ministério da Cultura que vão desde a atenção às tradicionais festas populares até a conservação dos acervos e do patrimônio histórico
A importância da cultura como base da democracia e transformação da sociedade. Esse é um conceito reconhecido em todas as sociedades desenvolvidas. O Jornal da USP ouviu os depoimentos de professores e pesquisadores da Universidade de São Paulo que destacaram a sua importância para o desenvolvimento do País. Ou, como bem aponta o Programa Eixos Temáticos da USP (http://proetusp.webhostusp.sti.usp.br/?q=projeto), iniciativa da Reitoria da Universidade de São Paulo, com integrantes de diversas áreas, a ”Cultura atrelada à Artes e Educação funciona como um farol da sociedade para o futuro, contribuindo com os grandes desafios do nosso tempo”.
Veja abaixo os depoimentos e as propostas apresentadas por eles.
” Quando as baianas chegam vestidas de branco para a tradicional Lavagem do Bonfim que acontece sempre no dia 12 de janeiro, com água de cheiro e vassouras, a expectativa é de lavar a alma do povo…”
O professor e fotógrafo Atílio Avancini, da Escola de Comunicações e Artes da USP é um estudioso da Festa do Bonfim, pesquisa que já resultou em livros e exposições. Ele defende a importância das festas populares de todo o País.
“Nesta semana, os baianos e turistas de diversos países estão se encontrando para a maior festa da cultura popular. Um movimento de paz em Salvador, depois do vandalismo e depredação em Brasília no último dia 8. A festa bissecular acontece pela primeira vez neste período de pandemia em um momento social e político difícil, mas muito oportuno. Quando as baianas chegam vestidas de branco para a tradicional Lavagem do Bonfim que acontece sempre no dia 12 de janeiro, com água de cheiro e vassouras, a expectativa é de lavar a alma do povo… Um ritual importante para iniciar o ano com fé e esperança renovadas que vai muito além do rito do candomblé de matrizes africanas e da fé católica. Tem reunido pessoas de todas as crenças, tornando-se uma comemoração ecumênica.
A ministra da Cultura, Margareth Menezes, que é de Salvador, tem dado atenção especial à celebração. Ela reconhece a riqueza cultural do País como uma das mais potentes do mundo. Porém, é imprescindível incentivar todas as comemorações populares como a Festa do Divino, a Congada, o Bumba meu Boi, o Círio de Nazaré, entre outras importantes para a promoção da diversidade e do patrimônio cultural.
A vida contemporânea reafirma sentidos para que a cultura da Lavagem do Senhor Bonfim exerça sua função, modificando e aperfeiçoando consciências. Importante também que gera o aumento na economia interna, além de preservar a identidade cultural baiana e brasileira. Festa transcultural, integra a convivência entre duas diferentes matizes religiosas, o cristianismo e as tradições africanas, bem como a interação entre o sagrado e o profano.”
“Acredito que a cultura tem um grande poder de transformação social, tanto no sentido de lançar questionamentos e promover a discussão de ideias importantes para a sociedade como na própria capacidade de gerar empregos…”
A arte de Hugo Fortes, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, sai em defesa do meio ambiente e da Floresta Amazônica. Em seus vídeos, instalações, fotografias e pinturas mostra o compromisso de aliar arte, natureza e ciência e acredita no compromisso da atuação do Ministério da Cultura. Também como professor na graduação e pós-graduação, os temas ambientais são prioritários. Observa:
“Acredito que a cultura tem um grande poder de transformação social, tanto no sentido de lançar questionamentos e promover a discussão de ideias importantes para a sociedade como na própria capacidade de gerar empregos e renda para todos os trabalhadores do meio cultural. Minhas sugestões para o Ministério da Cultura são:
– Retomada de editais de apoio à produção de obras culturais em todas as áreas, favorecendo não somente produtores culturais, mas também voltadas diretamente para artistas individuais ou grupos independentes.
– Retomada de editais que possibilitem o transporte de artistas e obras para exposições, apresentações, concertos ou shows em diversas partes do País, ou até mesmo internacionalmente.
– Desburocratização e facilitação dos processos de proposição de projetos e sistemas de prestação de contas, de maneira a permitir que os próprios artistas tenham acesso à formatação de projetos sem depender de forma extrema de profissionais contábeis ou de empresas produtoras.
– Atenção para a inclusão social e diversidade de forma ampla, lançando editais para povos indígenas, pretos, população LGBTQIA+, pessoas em situação de risco e menos favorecidos, portadores de deficiência, porém não se restringindo a questões puramente identitárias ou a esses públicos, de maneira a valorizar as linguagens artísticas em sua pluralidade e diversidade, incluindo obras ligadas à cultura popular e tradicional, mas também considerando os espetáculos e obras mais experimentais e inovadores.
– Adoção de medidas que valorizem a arte-educação e a inserção da cultura no ambiente escolar.
– Lançamento de editais específicos para produções que contemplem temas de relevância para o País, como a proteção ambiental, a diminuição de preconceitos e a diversidade, as discussões histórico-políticas, a educação e a saúde pública.”
“O Brasil precisa ainda, urgentemente, pensar numa clara política pública de difusão de seus acervos artísticos e culturais, e que eles possam servir à formação do cidadão brasileiro, que neles possam se sentir representados”
Diante das obras de arte destruídas no último domingo, dia 8 de janeiro, como As Mulatas, de Di Cavalcanti (avaliada em R$ 8 milhões), no salão nobre do Palácio do Planalto; O Flautista, escultura em bronze de Bruno Giorgi; a escultura de Frans Krajcberg, apontado como o defensor das florestas, entre outras peças, o que fazer para a conscientização da importância do patrimônio artístico e histórico?
Ana Magalhães, professora e diretora do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da Universidade de São Paulo, defende a importância da educação de base. Explica:
“Entendo que o primeiro passo, o mais simbólico, foi dado pelo novo governo, isto é, o de restituir o Ministério da Cultura, cuja ministra é já uma sinalização da importância que se dará para a diversidade cultural deste país. Isto é, de fato, um marco histórico para o Brasil, e se refletiu tanto no discurso do presidente Lula como na fala de seus ministros como um todo. O corpo ministerial mostra claramente esta diversidade, fundamental para que se inicie a reparação aos povos originários do território e aos afrodescendentes, e se reconheça essas contribuições para a formação sócio-político-cultural-intelectual do Brasil.
Falando como diretora do MAC USP, responsável por um acervo considerado patrimônio nacional em sua tipologia, penso ser fundamental reestruturar os diferentes departamentos do MinC, e órgãos como a Fundação Nacional de Artes (Funarte), o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) que, quando criados, tiveram como meta a promoção, difusão e preservação da cultura e das artes do Brasil, além de programas de fomento à preservação e infraestrutura dos museus e coleções públicas do País, de fomento à criação artística em suas várias formas, sempre buscando apoiar a quem menos tem. Seria também importante que o Ministério da Cultura pudesse elaborar uma política cultural ampla de nacionalização e internacionalização que desse as diretrizes da promoção da diversidade artístico-cultural brasileira, que orientasse todos os seus programas de fomento.
O País precisa, ainda, urgentemente, pensar numa clara política pública de difusão de seus acervos artísticos e culturais, e que eles possam servir à formação do cidadão brasileiro, que neles possam se sentir representados.
Por fim, pensar em modos de fomento à profissionalização e formação em vários níveis para que o Brasil efetivamente estruture um setor do que se chama hoje de economia criativa, mas que envolve antes de mais nada, a formação altamente especializada de gestores, curadores, documentalistas, arquivistas, conservadores, museólogos, produtores culturais, educadores, entre outros. E que as artes voltem a ter centralidade na educação de base deste país.”
“Não menos importante é retomar políticas públicas de investimento em cultura digital, pensadas em conjunto com propostas do campo da educação e orientadas para o letramento digital e a ocupação crítica e criativa das redes”
Giselle Beiguelman é artista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Tem lançado livros e realizado exposições por todo o País e também no exterior. Seu desafio tem sido a cultura digital na arte, ciência, educação e a ocupação criativa das redes. Destaca:
“Uma pauta central para o Ministério da Cultura é reconstruir as políticas públicas de memória e reparação. A nomeação de quadros técnicos do mais alto gabarito no Iphan, como já foi feito pela ministra Margareth Menezes, é um ótimo sinalizador. Mas é importante pensar que o campo do patrimônio vive uma importante virada decolonial e criar estratégias para contextualizar e dinamizar os marcos oficiais é fundamental, assim como para problematizar os acervos e as formas de descrever as suas peças e obras.
Isso remete também a uma prática transdisciplinar e em diálogo com outras pastas, conferindo relevância e articulação das políticas de memória em relação às pautas ambientais e da justiça, além dos seus possíveis interfaceamentos com a área de turismo.
Não menos importante é retomar políticas públicas de investimento em cultura digital, pensadas em conjunto com propostas do campo da educação e orientadas para o letramento digital e a ocupação crítica e criativa das redes.”
“A esperança reside especialmente no retorno do Ministério da Cultura e da potencialidade da Educação, dos Direitos Humanos e do Meio Ambiente. É evidente que não se espera nenhuma tarefa fácil”
Alecsandra Matias de Oliveira, professora do Centro de Estudos Latino-Americanos da Escola de Comunicações e Artes da USP e colunista doJornal da USP destaca:
“A gestão de Lula já se inicia com imagens simbólicas fortes e com a promessa da pluralidade. A esperança reside, especialmente, no retorno do Ministério da Cultura e da potencialidade da Educação, dos Direitos Humanos e do Meio Ambiente. É evidente que não se espera nenhuma tarefa fácil. As forças conservadoras não foram embora num avião. Elas estão presentes e ativas.
A expectativa reside nas ações integradoras entre os campos economia e política dedicados à defesa radical do direito daqueles invisibilizados historicamente e, praticamente, apagados nos quatro anos passados. De fato, a esperança está na compreensão de que economia, cultura e meio ambiente não são áreas excludentes. A promoção da equidade pode nos dar um país melhor. Isto não será alcançado em quatro anos, mas iniciamos o enfrentamento.”
“Nesta nova profusão ministerial, a Cultura deveria ser e estar em todos os lugares. E não apenas constar como apenso da “economia criativa”
Hugo Segawa, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e ex-diretor do Museu de Arte Contemporânea da USP destaca:
“No discurso de posse da ministra Margareth Menezes, ela situou um lugar: ‘O encontro desses dois eixos rodoviários forma o imaginário brasileiro. Um ponto de confluência das inúmeras culturas do norte, nordeste, sul, leste, oeste, do Brasil litorâneo ao Brasil profundo, que se combinam em uma identidade diversa, única, múltipla, mas sempre rica. Na cultura, há sempre riqueza. Tudo é riqueza.’ Ela se referia à encruzilhada simbólica entre o eixo norte-sul e o eixo monumental de Brasília, lugar em que, em 1987, após o fim da ditadura, Lúcio Costa, o urbanista da capital, se surpreendeu, ao retornar à plataforma rodoviária que planejou: ‘Isto tudo é muito diferente do que eu tinha imaginado para este centro urbano, como uma coisa requintada, meio cosmopolita. Mas não é. Quem tomou conta dele foram esses brasileiros verdadeiros que construíram a cidade e estão ali legitimamente. Só o Brasil… Na verdade, o sonho foi menor do que a realidade. A realidade foi maior, mais bela.
Ao descrever um amplo território, a ministra não se referiu apenas a uma base geográfica física, mas a uma territorialidade imaginária, de sabedorias e memórias mutantes. ‘Identidade diversa, única, múltipla…’ Recorda conceitos de Claude Lévi-Strauss: não se pode pensar o universal sem as diferenças de culturas, e não se pode pensar a diferença sem conceber um certo universal.
Tenho simpatia por uma definição de Gilberto Gil: ‘Por cultura entendemos não um conjunto de obras canonizadas segundo uma régua histórica de desigualdade, mas como uma constelação dinâmica na qual se inscrevem os atos criativos de um povo.’
Como superamos os cânones? Inventando e refletindo sobre. Mas sem perder de vista o que é digno. Dinâmicas criativas e práticas que podem ser reveladas, apreciadas, relativizadas, ensinadas, integradas, registradas e significadas. Outras ações poderiam ser processadas. Um Ministério da Cultura não faz tudo isso: pode estar por trás disso tudo. E a cultura não se limita a obras. Deve reconhecer sujeitos e agentes. Entre os mencionados pela ministra – ‘artistas, fazedores, produtores, gestores, servidores e trabalhadores’ –, talvez tenham faltado os pesquisadores. Somos bastante responsáveis por produzir os cânones. E os desconstruir.
A ministra mencionou a arquitetura moderna como parte da identidade brasileira: há tanto para qualificar. Não podemos nos acomodar em posições dogmáticas; e se afastar das polarizações, como o erudito e o popular, o local e o global e um sem-número de dualidades: há muito que (re)conhecer. Será que, motivados por uma guerra, percebemos que existe uma arquitetura e uma cultura ucraniana no Brasil? Ou que um dos pioneiros da arquitetura moderna no Brasil, Gregori Warchavchik, é refugiado ucraniano?
Como disciplinas, a Arquitetura, o Urbanismo, o Paisagismo e o Design são criadores de cultura, e são as que podem formular os lugares da cultura em muitos sentidos. O Design não é um problema só do Ministério da Indústria e Comércio; a Arquitetura e o Urbanismo, do Ministério das Cidades, Desenvolvimento Regional ou Transportes; ou o Paisagismo do Meio Ambiente e Turismo. Nesta nova profusão ministerial, a Cultura deveria ser e estar em todos os lugares. E não apenas constar como apenso da ‘economia criativa’.
Todavia, para fazer parte da identidade brasileira, ela precisa ser preservada e estudada. Evoco uma situação de minha área específica, mas que tem vigência em todos os campos. Nos últimos quatro anos, perdemos os grandes acervos de desenhos de Lúcio Costa e Paulo Mendes da Rocha. ‘Doamos’ para Portugal esses patrimônios, como commodities culturais que agora só podem retornar em formato digital mediante pagamento de direitos de reprodução. Desembolsamos por cópias de documentos da nossa cultura. Em completa contramão das ações de países como Holanda, Alemanha e Inglaterra, que estão restituindo patrimônios para suas origens.
O interregno de quatro anos exigirá um esforço extraordinário de reconstrução de diretrizes e políticas do Ministério da Cultura. Entretanto, convém uma metacrítica de seu passado: é preciso elaborar procedimentos, mapeamentos, resgates e direcionamentos inovadores; práxis outras para além das atitudes convalidadas. Novos substantivos, verbos, objetos e predicados para construir a revelação do Mistério da Cultura do Brasil imaginado e do Brasil real”.
“Concentrar esforços na macrogestão e fortalecimento do Sistema Nacional de Cultura, retomando o caminho para a estruturação de uma institucionalidade da Cultura”
O artista-educador e diretor de teatro, Sérgio de Azevedo, com doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas e mestrado em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da USP, pesquisa gestão e políticas culturais, experiência que desenvolve promovendo cursos e dirigindo peças de teatro. Diante da volta da implantação do Ministério da Cultura, assinala:
“ Na gestão das políticas públicas, um dos grandes desafios para o gestor ou gestora é o de lidar com a sempre presente situação de que necessidades são ilimitadas, já os recursos são limitados. Em um contexto de transição de governo, isso é ainda mais desafiador, alcançando um grau muito maior. Assim, acredito que a equipe do Ministério da Cultura terá muitas possibilidades pela frente e não me atrevo a apontar quais medidas deveriam ser tomadas. Faço um exercício de imaginação, indicando sugestões que faria em um grupo de trabalho focado em criar diretrizes. Concentraria esforços em três eixos:
Primeiro Eixo: Macrogestão. Ou seja, concentrar esforços na macrogestão e fortalecimento do Sistema Nacional de Cultura, retomando o caminho para a estruturação de uma institucionalidade da Cultura. Algumas ações: estruturação/reestruturação dos marcos regulatórios; reorganização da estrutura funcional e dos fluxos de trabalho do MinC; realização das conferências municipais, estaduais e nacional de Cultura; revisão, discussão e aprovação de um novo Plano Nacional de Cultura, entre outros.
Segundo Eixo: A reestruturação de um sistema de fomento e incentivo à produção, criação e distribuição em arte e cultura, especialmente em ações que anteriormente estavam concentradas no Programa Cultura Viva. Destaco especialmente os pontos de cultura, que foram uma das mais importantes ações das políticas culturais que fortaleceram o tecido social e lançaram recursos na ponta da estrutura cultural.
Terceiro Eixo: A formação em arte e cultura. Creio que uma ação conjunta com o Ministério da Educação, especialmente a Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica, por meio do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), possa garantir a oferta de cursos de qualificação profissional, especialmente para a formação de agentes, produtores e produtoras culturais, possibilitando condições formativas para que o cidadão seja protagonista de seu próprio percurso e seja cada vez mais capacitado para ser proponente das transformações locais”.