A BR-319 em 2021, já após o anúncio feito por Bolsonaro de que a estrada seria asfaltada – Foto: Orlando K. Junior / Fundação Amazonas Sustentável
POR – PRISCILA PACHECO, OBSERVATÓRIO DO CLIMA / NEO MONDO
Autorização expedida durante a gestão Bolsonaro está sendo reanalisada pelo Ibama
Em julho de 2022, o então presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Eduardo Bim, assinou a Licença Prévia (LP) para o asfaltamento do chamado “trecho do meio” da BR-319, estrada federal que liga Manaus, no Amazonas, a Porto Velho, em Rondônia. O documento apresenta uma evidente fragilidade por não conter ações para evitar o desmatamento, a invasão de terra pública a e grilagem – crimes que costumam acompanhar a pavimentação de uma estrada na região amazônica. A Licença Prévia autoriza o asfaltamento de 405,7 km dos 885 km que tem a BR-319. Ou seja: quase uma rodovia Rio-São Paulo, no meio da mata ,o que pode servir como um tapete vermelho estendido para a degradação ambiental.
Especialistas do Observatório do Clima explicam que a licença não deveria ter sido liberada sem condicionantes específicas sobre o tema. A LP chega a mencionar a instalação de três postos de monitoramento e segurança “conforme evoluírem as tratativas para fortalecimento da governança territorial” – o que é vago e insuficiente. A governança para controle do desmatamento na região, inclusive, deveria ter sido implementada antes da liberação do documento.
“A emissão de licença ambiental para reconstrução e asfaltamento do trecho do meio da BR-319 pelo governo Bolsonaro não teve a atenção necessária. Se essa LP não for revista, estará consolidada a autorização governamental para explosão do desmatamento no estado do Amazonas, para uma degradação ambiental histórica e sem retorno”, destaca Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, lembrando que a estrada atravessa um dos trechos mais preservados da Amazônia. Ou seja: a pavimentação vai contra o compromisso internacional do Brasil com as metas climáticas.
“O processo de grilagem acompanha a 319. Só o anúncio da pavimentação já leva a uma inflação imobiliária”, diz Argemiro Teixeira, professor e pós-doutorando em análise e modelagem ambiental na UFMG, a Universidade Federal de Minas Gerais. A lógica é similar à do mercado de ações, quando investidores correm para comprar papéis de uma empresa na baixa, na esperança de vendê-los no futuro por um preço inflacionado. Mas nesse caso, as “ações” são trechos de floresta, e os “investidores”, os grileiros, que invadem as terras e derrubam a mata para reivindicar a posse e vender o terreno por um preço mais alto, quando o asfalto chegar.
Rodrigo Affonso de Albuquerque, também professor da UFMG e pesquisador na área de meio ambiente e transportes, ressalta que o impacto de uma rodovia como a BR-319 vai para além da área que está próxima à via. “É o efeito espinha de peixe”, ele diz, para explicar que novos ramais – quase sempre ilegais – costumam surgir na floresta, a partir da rodovia principal, formando um desenho similar ao de uma espinha de peixe, e aumentando a ocupação predatória.
Um estudo publicado em 2014 no jornal de Conservação Biológica por integrantes do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e de universidades dos Estados Unidos e da Austrália atestou que, para cada quilômetro novo de estradas oficiais, surgem outros três de vias clandestinas. A lógica é contábil. Diretor do Controle de Desmatamento e Queimadas do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), Raoni Rajão mencionou recentemente uma estimativa da UFMG que calculou em cinco vezes o retorno financeiro de uma terra grilada.
Desde 2004
O risco de devastação da floresta com o asfaltamento da BR-319 já era alertado pelo próprio governo federal ao menos desde 2004. Naquele ano, o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) incluía a rodovia na relação de obras que poderiam abrir novas frentes de ocupação em regiões vulneráveis.
O primeiro parecer técnico do Ibama nesse processo de licenciamento, publicado em 2005, destacava que desde a construção da BR-319 – a rodovia foi inaugurada em 1976 pelo governo militar -, havia pressão sobre os recursos naturais locais: “Com base no padrão de ocupação apresentado, e verificando a situação atual do desmatamento na Amazônia, podemos verificar nas últimas décadas que os grandes investimentos em infraestrutura, especialmente rodovias, com implantação e pavimentação, têm sido uma das principais causas de desflorestamento na região.” O parecer ressaltava que a BR-319 poderia ter o mesmo destino das BR-163 e BR-230, ambas na Amazônia: grilagem, ocupação de terras públicas e queima dos espaços já devastados.
O Estudo de Impacto Ambiental e o seu respectivo Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima), que devem ser apresentados antes do pedido de licença nesse tipo de empreendimento, tiveram duas versões que nem sequer foram aceitas para análise, por não atenderem determinações do Ibama. A terceira versão, apresentada em 2009, chegou a ser aceita e analisada pelo órgão, que concluiu o seguinte: “Considerando as graves falhas no diagnóstico dos meios físico e biótico, bem como necessidade de complementações do Meio Socioeconômico, o EIA não reúne as mínimas condições e informações que permitam avaliar a viabilidade ambiental do empreendimento”. Veio então o governo Bolsonaro, com o desmonte do Ibama, e um novo EIA/Rima foi aprovado sem alarde, em 2021, em meio à pandemia de Covid-19.
O EIA/Rima aprovado, feito pela Engespro Engenharia, chega a apontar que a pavimentação aumentaria os riscos de grilagem e ocupação irregular da região, mencionando a possibilidade de incêndios florestais, especulação imobiliária, perda de biodiversidade e pressão sobre espécies vulneráveis. Também menciona que “as atividades da obra e o movimento de maquinário pesado poderão comprometer temporariamente a qualidade da água de alguns rios, que poderão sofrer processos de erosão e assoreamento parcial”, prejudicando “hábitats e a diversidade de peixes e zoobentos.” Por fim, menciona que “a fauna local sofrerá com impactos, devido às obras na região, que resultará no afugentamento das proximidades da rodovia”. Ainda assim, contraditoriamente, defende a viabilidade da obra. Tais problemas foram ignorados na LP liberada um ano depois por Eduardo Bim, então presidente do Ibama.
“A Licença Prévia do asfaltamento do trecho do meio da BR-319 é nula”, diz Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima. “Estamos longe de ter governança, recursos e outras medidas que garantam controle efetivo do desmatamento na região e os problemas serão fortemente ampliados com o asfaltamento. É um atestado de viabilidade de uma obra inviável”.
Os efeitos negativos já são concretos. O desmatamento no entorno da rodovia cresceu 122% entre 2020 e 2022, depois de Jair Bolsonaro anunciar que a via seria asfaltada. “Com o anúncio da pavimentação do trecho do meio e após a concessão da Licença Prévia, estamos assistindo a uma ação forte de tentativa de grilagem na região. Qualquer pessoa que se deslocar pela estrada vai ver placas vendendo terras localizadas em áreas públicas”, afirmou Rodrigo Agostinho, atual presidente do Ibama, em entrevista recente ao Observatório do Clima.
População local
A LP é a primeira etapa do processo de licenciamento, quando se decide pela viabilidade ou não do empreendimento quanto à sua concepção e localização, com base no EIA e outros estudos. Na sequência, deve ser elaborado o Plano Básico Ambiental (PBA). Se o PBA for aprovado pelo Ibama, será concedida a Licença de Instalação (LI) para o início das obras e, depois, a Licença de Operação (LO) para liberar o tráfego na via.
Procurado pelo Observatório do Clima, o Ibama disse estar analisando se o licenciamento foi regular e se os principais conflitos e consequências do empreendimento, como aumento do desmatamento, foram devidamente avaliados. O instituto acrescenta que a pavimentação da BR-319 é um dos processos de licenciamento mais sensíveis em curso.
O trecho do meio da BR-319 atravessa os municípios de Borba, Beruri, Manicoré, Tapauá, Canutama e Humaitá, todos localizados no Amazonas. Segundo estimativa de 2021 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há 210,2 mil habitantes nesses municípios, mas poucas dessas pessoas seriam atendidas pela estrada, já que a população rural está concentrada na beira dos rios. A comunidade com maior concentração populacional perto da rodovia conta com 6 mil habitantes, segundo o EIA/Rima. Trata-se da comunidade Realidade, que faz parte de Humaitá.
“A obra na estrada não faria sentido nem do ponto de vista econômico”, explicou Suely Araújo, do Observatório do Clima. “Hoje, a maior parte da carga entre Manaus e Porto Velho é transportada pela hidrovia do rio Madeira, até porque o custo do modal hidroviário é bem mais baixo. O correto, em termos de impacto ambiental e de atendimento à população, seria melhorar a hidrovia.”