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ARTIGO
Por – Bianca Gomes*, especial para Neo Mondo
O Brasil completou recentemente 100 dias de um novo governo que, para além das pesquisas de avaliação que dividem opiniões, tem respondido a temas sensíveis para a sociedade. Um deles foi o decreto que atualiza e regulamenta o Marco Legal do Saneamento, que vinha sendo discutido há mais de dois anos e continha pontos de discordância relevantes entre gestores de estatais e de empresas privadas que prestam serviços de saneamento em todo o país.
Sem entrar no mérito de cada um dos pontos de discordância, a questão hídrica dialoga diretamente com esse decreto, já que ele estabelece que os serviços devem garantir abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana, manejo dos resíduos sólidos, drenagem e manejo das águas pluviais de forma adequada à saúde pública e à proteção do meio ambiente.
Sendo o saneamento definido como um conjunto de ações que buscam controlar os fatores do meio físico do homem, que exercem ou podem exercer efeitos deletérios sobre seu estado de bem-estar físico, sobre a saúde e a sobrevivência (WHO, 1950); o não provimento de serviços básicos além de representar insuficiência na aplicação de políticas públicas também fere um direito constitucional que visa garantir a qualidade de vida da população brasileira e, consequentemente, o desenvolvimento do País, já que é um dos indicadores mundiais de classificação social.
O saneamento é essencial para a saúde da população e alguns dados provam isso: segundo o Ministério da Saúde (DATASUS 2021), o Brasil registrou quase 130 mil internações, em 2021, provocadas pelas chamadas doenças de veiculação hídrica, causadas por contaminações na água. Isso revela o quanto a falta de saneamento prejudica a população e que, dadas as características dos territórios (urbano ou rural) e habitações onde vive, pode ser mais ou menos impactada, resultando em crianças ausentes nas escolas, trabalhadores impossibilitados de exercerem suas atividades laborais e, em último caso, óbitos.
Uma forma de pressionar os tomadores de decisão sobre a importância do saneamento seria olhá-lo com um investimento e não como custo. António Guterrez, secretário-geral da ONU, defende a ideia de que um ambiente saudável, provido de boas condições saneantes, é fundamental para as pessoas, mas também para os negócios e o planeta, e ressalta que para cada dólar investido em água e saneamento básico, até 5 dólares são devolvidos em melhores condições de saúde, produtividade, educação e empregos no mundo (Nações Unidas – Brasil, 2021).
E esse tipo de debate não é novidade. Dirigentes mundiais vêm discutindo esta pauta há décadas, sendo a falta de saneamento declarada como um obstáculo a ser vencido para o progresso da humanidade durante a Cúpula do Milênio nos anos 2000. O acesso à água, por sua vez, foi proclamado como um direito humano pela ONU em 2010. Agora, na Conferência da ONU sobre a Água, realizada em março deste ano em Nova Iorque, o tema voltou ao debate com uma abordagem ampliada, de que a água é um direito ecossistêmico. Ou seja, é um direito das futuras gerações e passa a ser encarada pela ONU como um bem comum.
Malu Ribeiro, diretora de Políticas Públicas da Fundação SOS Mata Atlântica, esteve na Conferência da ONU sobre a Água e ficou muito satisfeita com essa nova diretriz da entidade, pois entende que isso deve impulsionar a tomada de decisões no Brasil.
“Esse é o momento para que o Brasil aprove, finalmente, a proposta de emenda da Constituição, a PEC número 6, que coloca o acesso à água limpa e tratada como direito fundamental de brasileiros e brasileiras”, disse Malu, durante um evento realizado em São Paulo, promovido pela TyQuant, solução hídrica da Synergia Socioambiental, sobre a dicotômica questão hídrica vivida no Brasil: escassez e abundância.
Juntamente com outros especialistas brasileiros, Malu contou que levou essa pauta para a ONU, com o intuito de fortalecer as reivindicações brasileiras diante do mundo: “essa PEC, aprovada em 2022 por unanimidade no Senado, ainda não foi aprovada na Câmara. E, para que ela seja aprovada na Câmara, nós levamos para a agenda da ONU para pressionar”.
No mesmo evento, em São Paulo, Maria José Brito Zakia, doutora em Ciências da Engenharia Ambiental e professora na UNESP, trouxe sua visão sistêmica para a solução do problema hídrico brasileiro: “não há solução única, não há bala de prata. Somente as soluções compartilhadas trarão algum resultado”.
Uma dessas soluções foi apresentada pelo doutor e mestre em Irrigação e Drenagem, Rinaldo Calheiros. Ele explicou, na ocasião, o conceito de produção de água.
Segundo ele, é possível produzir água por meio de soluções baseadas na natureza, como a infraestrutura verde. Ao contrário da infraestrutura cinza, que atua no sintoma do problema, construindo barragens, represas, piscinões, transpondo rios, a infraestrutura verde atua sobre as causas e não sobre os efeitos.
“Eu me lembro quando fui fazer uma reunião para explicar o conceito de sustentabilidade hídrica para uma equipe da prefeitura de uma cidade no interior de São Paulo. O entendimento do poder público da cidade era, na época, implantar uma nova bomba para captar mais água do rio Atibaia. Porém, outras cidades que ficavam a montante também tinham intenção de captar mais água do Atibaia. Então, era óbvio que, com o aumento da população de todas aquelas cidades, uma hora a água não chegaria na parte de baixo. Ou seja, um mesmo manancial querendo ser consumido por cidades diferentes”, explicou Calheiros.
O especialista demonstrou de forma didática que a metodologia TyQuant, desenvolvida por ele, contempla o desenvolvimento de planos de autossuficiência hídrica, quantificação do potencial de água, plano de segurança de mananciais e monitoramento hidrológico. Isso resulta em produção de água e representa chances concretas de mitigação dos efeitos causados pelos eventos climáticos extremos.
“Produzir água é possível e não se trata de transformar tudo em grandes florestas. A floresta é de fundamental importância, ela tem o seu lugar definido e deve ser conservada, obviamente. Mas também temos que considerar as ocupações existentes e as necessidades antrópicas. Enfim, atuar de forma equilibrada para promover uma equiparação entre as necessidades humanas e as necessidades que o ecossistema pede”, completou Calheiros.