Árvores são extensões verticais da área de vida de onças-pintadas no Pantanal, sobretudo de fêmeas e filhotes, concluem pesquisadores em artigo recém-publicado – Foto: Edu Fragoso
POR – MICHAEL ESQUER, PARA ((O))ECO / NEO MONDO
Proteção dos filhotes, descanso e comunicação: estudo mostra como árvores são extensões verticais da área de vida da onça-pintada no Pantanal
A onça-pintada (Panthera onca) é um dos grandes felinos dotados da capacidade de subir em árvores. Os motivos que influenciam o comportamento podem diferir, mas no Pantanal as fêmeas do maior felino das Américas podem estar utilizando a estratégia como um refúgio seguro tanto para si quanto para os filhotes, sendo estes últimos protegidos da prática de infanticídio ao se ‘esconderem nas alturas’. Isto é o que revela estudo recém-publicado na Springer Nature.
Publicado neste mês em forma de artigo na revista Actha Ethologica, o trabalho, que mostra as árvores como extensões verticais da área de vida da Panthera onca, é assinado por pesquisadores da Associação Onçafari, Instituto SOS Pantanal, Panthera, Instituto Pró-Carnívoros, Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O artigo é resultado de um esforço que realizou a coleta de quase uma década de dados sobre a espécie no Pantanal. “Isso indica a importância de termos estudos de longo prazo para uma espécie como a onça-pintada, que tem uma longevidade um pouco maior e o ciclo geracional também maior”, conta a ((o))eco Ronaldo Morato, coordenador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (CENAP) do ICMBio.
Na Amazônia, pesquisadores brasileiros já tinham mostrado que onças, tanto machos quanto fêmeas, adquirem um modo de vida semi arbóreo, se alimentando de presas que vivem em árvores, como macacos, preguiças e tamanduás-mirins, durante períodos de alagamento da floresta.
“No nosso estudo, procuramos entender esse comportamento no Pantanal, uma região diferente em quase todos os sentidos”, explica o biólogo e coordenador científico da Associação Onçafari, Edu Fragoso, que é o primeiro autor do artigo.
A observação prévia de que a maioria das onças que subiam em árvores na área de estudo eram fêmeas adultas com seus filhotes, e não de ambos os sexos como na Amazônia, também encorpou o anseio de estudar o tema.
Árvores, onças e seus filhotes
Como outros grandes felinos, a onça também consegue escalar árvores. “O exemplo mais clássico são os leopardos, hábeis escaladores de árvores e capazes inclusive de carregar suas presas para o alto dos galhos, a fim de proteger sua comida de outros carnívoros de maior porte, como hienas”, diz Fragoso.
Historicamente, o comportamento entre a Panthera onca esteve associado à fuga e proteção. “Tanto que os caçadores e seus cães costumam acuar as onças no alto dos galhos para matá-las a tiros”, conta o pesquisador. “Porém, até recentemente, nenhum estudo havia se concentrado nas demais motivações que levavam as onças-pintadas a escalarem as árvores”, acrescenta.
Para desenvolver a pesquisa, os pesquisadores coletaram dados de observações diretas e armadilhas fotográficas na Caiman Pantanal, um refúgio ecológico situado entre Miranda e Aquidauana, em Mato Grosso do Sul. Pesquisas prévias estimam uma densidade de 6,5 a 7 onças para cada 100 km² na região.
“Observamos um total de 252 escaladas independentes de árvores, 176 detectadas por observação direta e 76 por armadilhas fotográficas”, diz o artigo sobre o período de quase 10 anos de coleta de dados, entre 2013 e 2020.
Quando analisaram os dados, a suspeita que motivou o estudo foi confirmada pelos pesquisadores. As fêmeas adultas com filhotes responderam pela maior parte das escaladas (39,6%), seguidas pelas sem filhotes (37,7%) e pelos filhotes que subiram sozinhos (20,6%). Somente cinco machos adultos foram registrados subindo em árvores, o que representa apenas 1,9% das escaladas.
“Ou seja, fêmeas, com ou sem filhotes, e filhotes [sozinhos] representaram mais de 98% de todos os 252 registros obtidos no decorrer do estudo, sugerindo que o alto das árvores é um local onde essas classes de sexo e idade se sentem seguras”, comenta o primeiro autor do artigo.
Entre as árvores, as preferidas pelas onças e seus filhotes foram figueiras (Ficus sp.) e tarumãs (Vitex cymosa), o que pode ser explicado pelo fato destas serem comuns na área de estudo. “Frondosas, com muitos ramos horizontais, proporcionando sombra, cobertura e lugares confortáveis para descansar”, descreve o artigo.
Comportamento como estratégia
No início do ano, estudo publicado na editora científica Oxford University Press relatou a possibilidade de fêmeas com filhotes, na mesma área amostrada no artigo publicado este mês, exibirem o comportamento de acasalamento para minimizar as chances de infanticídio, como mostrou ((o))eco.
Para o coordenador da Onçafari, que também foi o primeiro autor daquela pesquisa, a escalada de árvores pode ser uma estratégia complementar. “No período que as mães estão longe de suas crias [para simular o acasalamento], os filhotes precisam estar protegidos de outras ameaças, e o alto das árvores podem ser locais bem importantes de refúgio”, explica Fragoso.
Como na região amostrada percebeu-se que onças ensinam a prole a escalar árvores desde os primeiros meses, o artigo sugere que o aprendizado aumenta as chances de sobrevivência dos filhotes, em um período de maior vulnerabilidade. “As mães não conseguem ficar 100% do tempo com suas crias, pois precisam caçar, beber água, descansar ou mesmo acasalar (sem fins reprodutivos) com os machos, a fim de afastá-los dos filhotes”, explica Edu.
Essa estratégia pode proteger os filhotes de outras ameaças, como possíveis predadores terrestres ou outras espécies agressivas que não conseguem subir em árvores. “Dessa forma, o processo de aprendizagem dos filhotes também pode ser importante para sua própria sobrevivência”, afirma trecho do artigo.
O comportamento também contribui para a comunicação. “São locais de extrema importância para a comunicação indireta entre as onças, através de marcações visuais (ao arranhar) e olfativas (ao se esfregar e/ou urinar)”, explica Fragoso.
Em períodos de acasalamento, o artigo constatou que o comportamento ainda se torna uma estratégia contra o assédio de machos. “O comportamento de subir árvores das onças-pintadas pantaneiras está ligado principalmente a uma estratégia das fêmeas em evitar o assédio dos machos […] pois temos diversas observações onde o casal está acasalando e, em determinado momento, a fêmea sobe uma árvore onde ela fica sem a companhia do macho”, detalha a ((o))eco o biólogo e pesquisador associado do Instituto Pró-Carnívoros, Henrique Villas Boas Concone.
Mas “por que os machos ‘pantaneiros’ não sobem em árvores como os machos ‘amazônicos’?”, indaga Villas Boas, que é co-autor do artigo. Sobre isso, o estudo mostra que o peso pode ter sido um fator limitante para a escalada das árvores, o que explica o fato de machos adultos, que podem chegar até 140 kg no Pantanal, terem representado menos de 2% das escaladas em quase uma década.
O infanticídio entre onças
O infanticídio consiste na morte de filhotes por indivíduos adultos. A prática é reportada para a onça-pintada em relatos científicos que sugerem os machos como praticantes do comportamento, apesar de as fêmeas também poderem realizar a prática.
Os motivos que ocasionam o comportamento na vida selvagem podem estar relacionados tanto à tentativa de um macho de colocar fim a linhagem de outro macho, à própria necessidade fisiológica de alimento ou, ainda, ao adiantamento do cio de uma fêmea – o que aumenta as chances de perpetuação genética.
O que motiva a escalada
A onça-pintada é um animal versátil, que desenvolve estratégias de sobrevivência distintas a depender da paisagem onde ocorre, relata o pesquisador da Onçafari. Os motivos que levam a espécie a escalar árvores em um ambiente podem não ser os mesmos em outro.
“O comportamento de subir em árvores se desenvolveu sob diferentes variáveis e motivações, como condições ambientais, regimes de cheia e seca, disponibilidade de presas, tamanho”, explica Fragoso ao relembrar que até o peso do animal varia ao longo da sua distribuição.
Se na Amazônia, por exemplo, subir em árvores representa a sobrevivência da espécie durante os meses de cheia, o comportamento pode ser provocado por diferentes fatores em outras regiões, como revelaram os pesquisadores no Pantanal sul-mato-grossense.
Um exemplo disso é a própria inundação, que não foi um fator que favoreceu a escalada de árvores no Pantanal. Diferente do que se constatou na Amazônia, onde a água alcançou até 10 metros de profundidade durante o alagamento da floresta, na área estudada do Pantanal a inundação periódica alcançou menos de meio metro de profundidade na estação chuvosa.
“A inundação das várzeas do Mamirauá ‘força’ as onças a subirem nas árvores e adotarem esse estilo de vida semi arbóreo. No Pantanal não encontramos esse padrão. As onças subiram independentemente da época do ano, fosse na cheia ou seca”, explica Fragoso.
Entretanto, em um mesmo bioma o comportamento também pode diferir a depender da região. Em Porto Jofre (MT), que fica na porção norte do Pantanal, por exemplo, onças têm sido observadas subindo em árvores para pular sobre suas presas.
“Quando ela está caçando, caminhando na beira do rio procurando jacarés, se ela, de repente, encontra uma árvore caída, ela sobe pra observar”, conta a ((o))eco o guia de turismo e gestor ambiental Ailton Lara. “Se chegar um jacaré por baixo [da árvore], ela vai saltar com certeza em cima”.
Mas entender o comportamento na região também requer estudos. “No Porto Jofre ainda é pouco compreendido essa situação. A gente está observando, aprendendo com os próprios animais”, relata Lara.
Fragoso afirma que isso é reflexo da versatilidade da espécie. “É esperado que em outras regiões forças evolutivas diferentes regulem esse comportamento”, afirma Fragoso.
A importância das áreas florestadas
No Brasil, as maiores populações de onças-pintadas são encontradas, respectivamente, na Amazônia e Pantanal. Entretanto, no passado, a maior área úmida continental do planeta atingiu a maior taxa de desmatamento do quadriênio (2019-2022) e a Amazônia perdeu 21 árvores por segundo, revelam dados do Relatório Anual de Desmatamento (Rad) deste ano do MapBiomas.
Para o coordenador do CENAP/ICMBio, o estudo publicado este mês é importante para o planejamento de estratégias de conservação, e também se soma a outros que mostram como as áreas florestadas são importantes e preferidas pela espécie. “Ela pode ajustar seu comportamento em ambientes mais desmatados, mas, tendo a opção de escolher, ela vai preferir a área florestada”.
Segundo Morato, essa preferência pode refletir diretamente no que revelam os pesquisadores sobre o comportamento da espécie no Pantanal. “Além da cobertura ser um local de refúgio, descanso, forrageio, é também um local para as fêmeas afastarem machos que possam querer matar seus filhotes”.
O primeiro autor do artigo reafirma a importância: “As árvores são extensões verticais das áreas de vida das onças-pintadas, usadas para proteção, descanso, exploração e para comunicação indireta por marcações visuais e olfativas”, conclui Edu Fragoso, o coordenador científico da Associação Onçafari.