Povo Xokleng se emociona ao ver resultado sobre marco temporal – Foto: Tukuma Pataxó/Apib
POR – PRISCILA PACHECO e LEILA SALIM, OBSERVATÓRIO DO CLIMA / NEO MONDO
Corte finaliza julgamento contra tese que viola direito dos povos originários à demarcação; movimento indígena segue mobilizado contra ameaças
O Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou a tese do marco temporal das terras indígenas na tarde desta quinta-feira (21), por 9 votos a 2. Após o ministro Luiz Fux formar a maioria na reabertura do julgamento, também votaram contra a ministra Cármen Lúcia e, surpreendentemente, Gilmar Mendes, depois de um longo discurso que indicava o oposto. Rosa Weber, presidente do Supremo, encerrou a sessão também rejeitando a tese, considerada inconstitucional.
A tese do marco temporal, defendida por ruralistas, limita o direito à demarcação dos territórios indígenas a áreas ocupadas ou comprovadamente reivindicadas pelos povos originários no momento da promulgação da Constituição, em outubro de 1988. É uma afronta aos direitos indígenas, que desconsidera os processos de expulsão violenta aos quais esses povos foram submetidos e praticamente anula a garantia de novas demarcações.
Ao menos 226 processos relacionados ao marco temporal estão suspensos no país, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). São processos distribuídos no Superior Tribunal de Justiça (STJ), tribunais regionais federais e tribunais estaduais. Agora todos deverão seguir a decisão da corte.
No momento de voto de Fux, foi grande a comemoração entre os indígenas que, às centenas, acompanharam a sessão do lado de fora do Supremo. Para a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), a anulação do marco temporal pelo STF é uma vitória. No entanto, a organização destaca que é preciso continuar acompanhando o julgamento com atenção para que nenhum direito seja negociado. “Apesar da vitória, não podemos baixar a guarda, pois a luta continua e os interesses econômicos e políticos contra os povos indígenas permanecem”, diz a instituição em nota.
Ao votar, a ministra Cármen Lúcia também ressaltou que as terras indígenas são as áreas com maior conservação ambiental. Segundo levantamento do MapBiomas, cerca de 1,4% do desmatamento no Brasil ocorreu em terras indígenas no ano de 2022, contra 83% em áreas privadas registradas no CAR e 8,9% em unidades de conservação.
O julgamento começou em setembro de 2021. O primeiro a votar foi o ministro Edson Fachin. Relator do Recurso Extraordinário (RE) 1017365 sobre a definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena e desde quando deve prevalecer a ocupação, Fachin argumentou contra o marco.
Um ano depois, o julgamento foi retomado com o voto favorável ao marco temporal do ministro Nunes Marques. O indicado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) argumentou que a posse tradicional não deve ser confundida com posse imemorial, o que exige a comprovação de que a área estava ocupada na data da Constituição ou de que os indígenas tenham sido expulsos por causa de conflitos de posse.
Retomado neste ano, com predomínio de argumentações longas, o julgamento teve mais um voto favorável ao marco dado pelo ministro André Mendonça, outro indicado por Bolsonaro – que inventou um tal “direito de conquista” sobre terras indígenas usurpadas e o usou como justificativa. Já os ministros Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Roberto Barroso e Dias Toffoli foram contra o marco temporal.
Moraes propôs, em seu voto, que proprietários de boa fé que estejam ocupando terras indígenas possam receber indenização pela terra nua, algo que hoje a legislação não permite (somente benfeitorias são pagas em caso de desapropriação). Zanin e Toffoli seguiram o entendimento. Os ministros, no entanto, não entraram em um acordo sobre o formato da indenização. Os ministros discutiram ainda a exploração econômica das terras indígenas, com destaque negativo para a defesa, feita por Toffoli, da mineração nesses territórios. Na semana que vem, a corte retoma a votação para discutir esses pontos e aprovar a tese final.
“A Apib considera que, apesar da existência de uma pequena parcela de pequenos proprietários que adquiriram de boa-fé títulos de propriedade sobre terras indígenas por ilegalidade praticada pelo Estado, a proposta da indenização supõe uma premiação aos invasores ilegais que representam a maioria das propriedades com sobreposição em terras indígenas, portanto, um incentivo à ocupação ilegal de terras paga com dinheiro público”, disse a organização em nota. Reportagem da Agência Pública mostrou que as indenizações para as dez terras indígenas mais disputadas do país custaria, no mínimo, R$ 1 bilhão.
“A partir do cruzamento de bases de dados fundiários do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), os dados dos relatórios Os Invasores, realizados por De Olho nos ruralistas, mostram 1.692 sobreposições de fazendas em terras indígenas, o que representa 1,18 milhão de hectares e, desse total, 95,5% estão em territórios pendentes de demarcação. Com a sua proposta, Moraes ignora a vasta história de grilagem de terras no Brasil e a ação criminosa de ruralistas, que tem provocado um aumento da violência contra os povos indígenas e um crescimento do desmatamento. Entre 2008 e 2021, 46,9 mil hectares foram desmatados em áreas de sobreposição de fazendas em terras indígenas, segundo apontam os dados do relatório previamente mencionado”, prossegue a Apib.
A votação chegou ao Supremo através da disputa da Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, em Santa Catarina, habitada pelos povos Xokleng, Guarani e Kaingang. A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) contesta decisão do Tribunal Federal da 4ª região (TRF-4), que, baseado na tese do marco temporal, concedeu pedido de reintegração de posse da área ao Instituto de Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA).
Apesar da vitória no STF, os indígenas ainda precisam lidar com o Projeto de Lei 2.903/2023, que já foi aprovado na Câmara de Deputados e tramita no Senado. Nesta quarta-feira (20), o senador Marcos Rogério (PL-RO), que é relator do projeto favorável ao marco temporal e vice-presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, tentou retomar a discussão. Porém, a senadora Eliziane Gama (PSD-MA) pediu vista do texto. A votação está prevista para o próximo dia 27 de setembro, mas a avaliação de especialistas é que a decisão do Supremo arrefece o ímpeto ruralista.
“O ambiente político para a tramitação fica prejudicado. Se insistirem e o PL virar lei, provavelmente ocorrerá uma nova judicialização”, disse Juliana Batista, advogada do Instituto Socioambiental.