Seca no lago Puraquequara, zona leste de Manaus – Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real
POR – KARINA LIMA, ESPECIAL PARA O OC / NEO MONDO
Caos climático de 2023 expõe racha na comunidade científica; há quem diga que só vamos cair no abismo, há quem diga que estamos indo para lá mais rápido
Já faz alguns meses que renomados pesquisadores da área do clima têm debatido, discordado e se dividido em duas vertentes. Veja bem, não se trata de negacionismo climático, mas de duas visões um pouco diferentes do nosso atual cenário. Tais visões não estão ligadas só à física do clima, mas também à forma de comunicar a emergência climática e de agir em relação a ela.
No grupo dos “aceleracionistas”, temos um dos maiores nomes da ciência climática dos nossos tempos: o americano James Hansen, responsável por decretar em 1988 que o aquecimento global já estava em curso. Esse grupo argumenta que está havendo uma aceleração do aquecimento nos últimos anos (após 2010), com um aumento do desequilíbrio energético da Terra, e isso estaria relacionado à diminuição da emissão de aerossóis.
Aerossóis podem refletir a luz solar, reduzindo a quantidade de radiação que atinge as camadas inferiores da atmosfera, logo, contribuindo para um efeito de resfriamento – é por isso que grandes erupções vulcânicas (que conseguem injetar aerossóis na estratosfera) podem reduzir a temperatura média do planeta por algum tempo.
Com o contínuo aumento das concentrações de gases de efeito estufa e as medidas tomadas nos últimos anos para restringir a poluição atmosférica, temos diminuição dos aerossóis e estamos perdendo o efeito de “mascaramento” que eles exercem. Dessa forma, estaríamos começando a ter uma noção do real estado do aquecimento global antropogênico. Hansen chama isso de “barganha faustiniana”.
Do outro lado, o grupo dos “tradicionalistas” também possui respeitados pesquisadores, incluindo Michael Mann, da Universidade da Pensilvânia, autor do famoso gráfico do “taco de hóquei” do clima. Eles argumentam que, apesar de os impactos estarem excedendo o previsto, não há evidências de uma aceleração recente no aquecimento global – que estaria seguindo a tendência das últimas décadas, o caminho esperado conforme as concentrações de gases de efeito estufa e considerando a variabilidade natural do fenômeno El Niño-Oscilação Sul.
O El Niño contribui para a elevação da temperatura média do planeta e já era previsto que 2023 seria um ano muito quente – agora é virtualmente certo que será o mais quente do registro instrumental (lugar ocupado até então pelo ano de 2016, no qual tínhamos o “El Niño Godzilla”), podendo até mesmo ultrapassar a marca de 1.5oC de aquecimento médio anual em comparação ao período pré-industrial. Mas tal ultrapassagem é temporária, não é a condição sustentada da meta do Acordo de Paris.
Tradicionalistas acham que interpretar como uma aceleração algo que pode ser uma variabilidade de curto prazo pode fortalecer discursos como, por exemplo, o utilizado por negacionistas de que o aquecimento teria “parado” após o último El Niño, em 2016 (quando, na verdade, é esperado um arrefecimento após esses eventos). Conforme os tradicionalistas, existem variações naturais, mas a tendência no aumento do aquecimento a longo prazo é clara e estável – e essa tendência já é ruim o bastante, não sendo necessário apelar a um discurso de que o cenário é ainda pior do que o previsto, pois isso contribui para o fatalismo e para a lógica de dependência de geoengenharias solares como solução.
Já os aceleracionistas acreditam que tradicionalistas estão ignorando evidências, pois a temperatura global no El Niño atual estaria excedendo a temperatura do El Niño anterior em mais do que é esperado para a taxa de aquecimento global. Dessa forma, estariam minimizando os riscos e contribuindo para a inação ao diminuir o senso de urgência da situação.
Certamente 2023 é atípico (e nenhum dos grupos nega isso), mas não se pode tomar apenas um ano como parâmetro em clima. Se a tendência de aquecimento seguirá como nas últimas décadas ou se ficará confirmada uma aceleração nos últimos 13 anos, mais estudos ou o tempo poderão mostrar.
Particularmente, acredito que há, sim, evidências de uma aceleração, mas que isso não deve tirar nossa confiança na ciência e nos modelos que, apesar das incertezas com relação à forçante dos aerossóis, consideram sim que a redução em sua concentração resulta em mais aquecimento. Também não deve diminuir nosso foco no plano A de mitigação das mudanças climáticas: rápida diminuição das emissões de gases de efeito estufa até alcançarmos zero emissões líquidas – e é neste ponto que paramos o aquecimento global. Para além do pessimismo da razão, o otimismo da vontade tem que estar presente, afinal, cada décimo de grau evitado no aquecimento global importa e faz diferença.
Karina Bruno Lima é doutoranda em climatologia na UFRGS e divulgadora científica.