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ARTIGO
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Por – Daniel Medeiros*, especial para Neo Mondo
A ideia de que a Lei é o conjunto de decisões tomadas pela sociedade e que sustenta seus valores comuns e, por isso, deve ser obedecida por todos, não teve uma grande aceitação no Brasil ao longo de sua história. Colônia de exploração, os grupos que foram se consolidando por aqui viram essa terra e o seu povo como meios ou obstáculos para seus interesses, nunca como partes de um projeto comum, no qual cada um dá sua cota de sacrifício e todos usufruem o que produziram coletivamente. Por isso, o Brasil é o país no qual os ricos acham que as políticas afirmativas são uma forma de “privilégio” para os pobres, e reclamam disso. No Dia Internacional da Mulher, ouvi de um homem branco e rico: “acho injusto que não tenha um Dia do Homem”. E emendou, cheio de ira cívica: “depois essa gente ainda vem com essa conversa de igualdade”.
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O golpe de Estado é a expressão dessa ausência de espírito coletivo. Quando a lei afeta os interesses, põe em risco os privilégios consolidados por anos e anos de exploração, a Lei é que padece. Ela não é um limite que pertença ao ethos social, mas um empecilho tolerado parcialmente. Até quando não é mais. E então vem o golpe.
Observem uma breve lista dos golpes nacionais que tivemos desde que o Brasil produziu sua primeira Constituição como nação independente. Ficam de fora os milhares de golpes nas leis estaduais e municipais e nas regras fundamentais que são simplesmente ignoradas, como a inviolabilidade do domicílio ou a presunção de inocência ou a proibição de castigos físicos ou da prática de tortura, passando pelo trabalho análogo à escravidão, entre tantos outros.
Atendo-se apenas aos golpes de Estado, temos: em 1823, um ano após a Independência, o próprio Imperador dá um golpe, fecha a assembleia constituinte e justifica: “a lei deve ser digna do país e de mim”. Prende os deputados e impõe sua própria constituição, feita à sua imagem e semelhança. Em 1840, diante de um quadro de agravamento social, com a população pobre exigindo direitos, os Liberais e Conservadores se unem para salvar seu “modo de vida” e burlam a constituição para entregar o poder ao menino Pedro de Alcântara, com 14 anos e meio. Pedro governaria, mantendo a escravidão, principal ativo das elites rurais, por 48 anos dos seus 49 anos à frente do país.
Em 1889, outro golpe, o primeiro perpetrado pelos militares, inicia a República. Logo a seguir, Deodoro, o primeiro marechal presidente, fecha ilegalmente o Congresso. Na sequência, Floriano, recusa a obedecer a Constituição e se nega a marcar novas eleições. Pouco depois, florianistas tentam matar o primeiro presidente civil do país, Prudente de Morais. A República começa fervendo em meio a disputas de grupos civis e militares pelos espólios da Monarquia. Quanto à Lei, ora, a Lei…
Depois de um período de calmaria, com o arranjo pelo alto firmado pelos cafeicultores e militares funcionando razoavelmente, a ideia do golpe de Estado volta com força nos anos 20: os jovens tenentes se rebelam para “moralizar” o país e acabar com a corrupção, devolvendo a Nação ao Estado e ordem e progresso. Por meio da Lei? Não, das armas. Em 1930, o golpe se consuma e mais um presidente perde o mandato pela força. Assume o gaúcho Getúlio, um civil apoiado por militares. Em 1932, há uma guerra civil, com os paulistas tentando, pela força, retomar as rédeas do país. Em 1935, os comunistas têm a sua chance, sem sucesso. Em 1937, o próprio Getúlio dá um golpe para governar com mais liberdade, porque a Lei o atrapalhava. Em 1938, os integralistas tentam matá-lo, mas não conseguem. Em 1945, os militares param de apoiá-lo e Getúlio cai.
Contaram quantos golpes e tentativas de golpe? Perderam-se nas contas? Calma, que tem mais. Em 1954, Getúlio é acuado por um golpe civil-militar e suicida-se. Na sequência, outra vez, civis e militares se unem para impedir a posse de Juscelino, mas o ministro da Guerra, um raro legalista, impede a aventura; de qualquer forma, Juscelino sofre duas outras tentativas de golpe, em Aragarças e Jacareacanga, mas sobrevive e termina o mandato. O sucessor, Jânio, dura 7 meses e renuncia. E lá vem mais golpe. Os militares tentam impedir a posse do vice, João Goulart. O país pega em armas, dividido. A solução parlamentarista alivia as tensões. Até 1964, quando, outra vez, militares e civis se unem para alterar a ordem e adequá-la aos seus interesses. Mais um golpe.
Nos 21 anos de regime militar, a ideia de obediência às regras e à Lei foi história pra boi dormir. Ocorreram vários golpes dentro do golpe, como o Ato Institucional número 2, que alterou arbitrariamente a Constituição, proibindo a eleição direta de presidente e fechando os partidos existentes; ou o Ato 5, que fechou o Congresso e suspendeu o habeas corpus. Em 1969, os militares impedem, inconstitucionalmente, a posse do vice, Pedro Aleixo. Enfim, uma bagunça sem fim.
Quem conhece um pouco a nossa História não se surpreende com a dificuldade profunda de muitas autoridades e de parte das elites em respeitar as regras do jogo, com apoio animado de amplos setores da sociedade, particularmente dos setores médios, sempre insatisfeitos e sempre temerosos de suas posses e posições sociais. O que surpreende é que não há, ainda, em pleno século XXI, uma luz no fim desse túnel. Evoé, novos golpistas!
*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso e Colégio Positivo.