Equipamentos ancorados a quase 4 km de profundidade detectarão variações de salinidade, temperatura e velocidade das correntes marítimas (foto: Mario Quandt Monteiro/SAMOC)
POR – AGÊNCIA FAPESP / NEO MONDO
Pesquisadores brasileiros vão monitorar a resposta do Atlântico às mudanças climáticas
Equipamentos recém-ancorados no meio do oceano – e a quase quatro quilômetros (km) de profundidade – detectarão variações de salinidade, temperatura e velocidade das correntes marítimas.
O objetivo é averiguar possíveis alterações na circulação oceânica, algo que pode ter consequências para o sistema climático do planeta. No caso do Brasil, além de aumento do nível do mar, os padrões de precipitação no litoral seriam afetados, impactando a produção agrícola e a vida nas cidades.
É a primeira vez que o monitoramento de mudanças na circulação oceânica no Atlântico Sul ocorre em pontos tão estratégicos e distantes da costa – a 1.950 km do litoral brasileiro.
O esforço é parte do South Atlantic Meridional Overturning Circulation (SAMOC), projeto que envolve pesquisadores e instituições da Comunidade Europeia, Estados Unidos, Brasil, África do Sul e Argentina. A participação dos brasileiros é apoiada pela FAPESP por meio de um Projeto Temático que dá sequência a estudos iniciados em 2007. As fases iniciais do trabalho tiveram apoio da National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA), dos Estados Unidos, em cooperação com a Argentina e o Brasil.
Costa do Oceano Atlântico, Costa Rica – Foto: Pixabay
A mais nova etapa do SAMOC é o South Atlantic Meridional Overturning Circulation Basin-wide Array (SAMBAR). Também apoiado pela Fundação, no âmbito do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais, o SAMBAR visa investigar uma parte importante da célula de revolvimento do Atlântico (MOC, na sigla em inglês).
“As mudanças climáticas têm sido muito estudadas a partir de dados coletados na atmosfera. No entanto, comparativamente, ainda avançamos pouco no conhecimento sobre o que ocorre nos oceanos, que são os grandes reguladores do clima na Terra”, disse Edmo Campos, professor do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP) e coordenador do lado brasileiro do projeto SAMOC.
“Isso ocorre porque é muito difícil fazer as medições em lugares tão remotos como o fundo do mar e o meio do oceano. A possibilidade de ter esses equipamentos por mais de cinco anos no fundo do Atlântico Sul representará um grande avanço”, disse.
Para tanto, no dia 15 de janeiro de 2019, o navio oceanográfico Antares, da Marinha Brasileira, partiu do Porto do Rio de Janeiro com equipamentos de análise das variações de salinidade, temperatura e velocidade das correntes marítimas.
Ao longo de 22 dias foram percorridas 3.105 milhas náuticas (5.589 km) para que os equipamentos fossem ancorados até que o navio aportasse, no dia 6 de fevereiro, no Porto de Itajaí (SC).
A expedição liberou os equipamentos em três pontos remotos do Atlântico Sul. No primeiro fundeio, foram ancorados equipamentos oceanográficos no canal Hunter (900 milhas náuticas ao sul da Ilha da Trindade) e na cadeia Meso Atlântica, situada 1.380 milhas náuticas a sudeste do litoral brasileiro (e 300 milhas náuticas do Arquipélago de Tristão da Cunha).
Também foi realizado um fundeio de sensores de temperatura e de salinidade, além de um correntógrafo para medir a velocidade da corrente no canal Vema (proximidades da elevação do rio Grande).
Região costeira da ilha de Trindade – Foto: João Luiz Gasparini
Água Antártica de Fundo
Segundo Campos, o estudo nesses pontos pode tanto ampliar o conhecimento sobre a circulação oceânica e o clima em todo o planeta, quanto detectar possíveis impactos das mudanças climáticas no Brasil.
“Isso porque a chamada célula de revolvimento meridional leva as águas quentes da superfície do Atlântico Sul para o hemisfério Norte. No caminho de volta dessa circulação, a água salina e, portanto, mais densa flui para o Sul a profundidades mais baixas”, disse.
Uma parte importante da circulação, e que a equipe de pesquisadores do SAMBAR estudará a partir de agora, é a massa d’água que vem do continente Antártico. A chamada Água Antártica de Fundo é formada no continente gelado e flui para regiões mais profundas dos oceanos Atlântico, Pacífico e Índico.
No Atlântico, a “entrada” dessa massa de água ocorre sobretudo pelo canal de Vema, localizado na latitude 30 ºS. O canal é um dos poucos lugares do Atlântico Sul com profundidade suficiente para não barrar as águas geladíssimas – e portanto mais densas – vindas da Antártica.
“O aquecimento global nos oceanos tende a ser mais lento que o ocorrido na atmosfera. Fazendo uma comparação, cerca de 10 metros de volume d’água equivalem ao calor específico que é acumulado em toda a atmosfera. É muita energia acumulada no oceano para que ocorram mudanças”, disse Mathias Campos van Caspel, pós-doutorando com bolsa da FAPESP e chefe científico da campanha de instalação dos equipamentos no oceano.
Segundo ele, uma vez que qualquer alteração começa a ser apresentada nos oceanos, demora muito tempo para que a energia seja dissipada outra vez. “É um impacto mais duradouro. Se bem que estudos recentes têm mostrado que as mudanças nos oceanos estão ocorrendo de forma muito mais rápida que o esperado”, disse à Agência FAPESP.
Onda no Oceano Atlântico – Foto: Pixabay
O pesquisador afirma que, ao analisar a Água Antártica de Fundo, é possível inferir variações ocorridas na Antártica.
“Ele é um dos primeiros continentes a sofrer as mudanças climáticas. Mais diretamente em relação à circulação oceânica, quando essa massa encontra as águas profundas do Atlântico Norte, ela faz com que a água profunda do Atlântico Norte perca profundidade na coluna d’água. Porém, caso ocorra uma alteração no volume ou densidade nessa interação, todo o resto da circulação oceânica pode ser bagunçado”, disse Caspel.
O pesquisador conta que existem várias formas de alterar esse sistema. Uma possibilidade seria a massa Antártica de Fundo e a do Atlântico Norte passarem a ter densidade semelhante, seja, por exemplo, por causa do derretimento de geleiras na Groenlândia ou na própria Antártica.
“Dessa forma, em vez de perder profundidade, elas passariam a se misturar, mudando o caminho por onde circulam, trazendo consequências para o oceano profundo. Qualquer mudança nessa célula de revolvimento pode encadear mudanças no restante do sistema”, disse.
A circulação oceânica não é um sistema isolado. “Tudo o que ocorre no hemisfério Norte, próximo do Atlântico Norte e o derretimento da Groenlândia, e o que acontece na Antártica está muito interligado. Alterações nesses pontos podem causar alterações na costa brasileira”, disse Caspel.
Papel do Atlântico Sul
Compreender o que se passa no Atlântico é fundamental para interpretar o que ocorre com o clima na Terra. O Atlântico é o único a transportar calor do hemisfério Sul para o Norte. Nos outros oceanos, essa transferência é feita do Equador para os polos.
Campos explica que oceano e atmosfera transferem juntos o excesso de calor do Equador para as latitudes mais altas, reduzindo as diferenças de temperatura.
Atlântico Sul – Foto: Pixabay
“Essa particularidade do Atlântico pode ter impacto no sistema climático, especialmente se houver maior transporte de sal do Sul para o Norte. Esse mecanismo funciona como uma bomba de energia de aproximadamente 1,3 petawatts de calor. Pequenas mudanças no transporte de calor podem levar a mudanças climáticas dramáticas”, disse Campos.
Embora o Atlântico Sul seja decisivo para a circulação de todo o Atlântico, a maioria dos estudos de monitoramento de circulação oceânica está fixada no Atlântico Norte.
“Para fazer previsões climáticas é preciso conhecer bem o que está ocorrendo. Existem modelos globais que estudam o que acontece na chamada Meridional Overturning Circulation [circulação meridional do Atlântico], mas com as nossas medições será possível ter mais confiança e modelos mais completos”, disse Caspel.
Diferente dos outros equipamentos fundeados no Atlântico durante os anos anteriores de projetos SAMOC, os três conjuntos estão em pontos mais remotos que os anteriores e terão um tempo mais longo de vida no fundo do mar.
“O mais custoso em expedições como a que fizemos é o tempo no navio oceanográfico. Os equipamentos foram ancorados com uma tecnologia nova, o Popeye Data Shuttle, que libera do fundo do mar uma espécie de boia com os dados do monitoramento. Esses dados serão transmitidos para os pesquisadores via satélite”, disse Caspel.
A equipe do SAMOC é uma das primeiras a usar essa tecnologia para fins científicos. Com isso, os pesquisadores não vão precisar retornar todos os anos para o ponto onde os equipamentos foram fundeados. A previsão é que os primeiros dados de monitoramento comecem a ser trabalhados pelos cientistas em 2020.
Além dos novos equipamentos recém-ancorados pelos pesquisadores brasileiros, outros também vão monitorar a circulação oceânica, porém mais a leste. A ação parte de outra campanha do SAMBAR, que integra pesquisadores da África do Sul, França e demais países da Comunidade Europeia.
“Estudamos a variabilidade na parte oeste do Atlântico Sul, com os pesquisadores da Argentina e dos Estados Unidos. Os outros países do consórcio internacional estão focados na parte leste. Cada grupo é responsável por um lado do Atlântico e, eventualmente, nos reuniremos para estudos em conjunto e artigos em colaboração”, disse Campos.