Por – Marina Amaral, Diretora Executiva da Agência Pública / Neo Mondo
Estarrecedora a reportagem do jornalista Chico Otávio, do Globo, sobre a abertura de investigação do Ministério Público do Rio de Janeiro a respeito da nomeação de um atirador esportivo, sem nenhuma credencial que o habilite, para a direção geral do Arquivo Nacional. O órgão é responsável pela gestão de documentos produzidos e recebidos por todas as instituições federais, incluindo os provenientes da ditadura militar.
A preocupação do MP-RJ é que Ricardo Borda D’Água de Almeida Braga, o diretor nomeado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, ao qual o órgão é vinculado, coloque em risco o acesso e a guarda dos documentos referentes às atividades dos órgãos de repressão brasileiros entre 1960 e 1990. Ao contrário de seus antecessores no cargo, Borda D’Água não é historiador, nem arquivista, mas profissional da área de segurança e colaborador emérito do Exército, além de atirador ranqueado no Clube Colt 45, como conta Chico Otávio.
No final de outubro, o repórter Matheus Leitão já havia publicado uma reportagem na Veja mostrando que os três autores que venceram o prêmio “Memórias Reveladas” em 2017, com trabalhos sobre o período da ditadura, até hoje não tiveram suas obras publicadas pelo Arquivo Nacional. Um deles, o historiador Lucas Pedretti, colaborou recentemente com a Agência Pública, publicando uma reportagem baseada em documentos inéditos deste acervo. A matéria mostra que os ideais do Orvil (livro ao contrário), feito secretamente pelo CIE do Exército, entre 1985 e 1988, para criar uma “narrativa” conveniente sobre a ditadura, continuou a circular na instituição mesmo com o veto do então presidente José Sarney. Até pelo menos 1991, a catequese das tropas se valia desse compilado clandestino de falsidades, meias verdades e ideais autoritários, utilizado para distorcer a história.
O prêmio “Memórias Reveladas” foi criado em 2010 para divulgar os documentos secretos, estimulando pesquisas no acervo de cerca de 12 milhões de páginas de documentos de órgãos como Abin, SNI, GSI, Conselho de Segurança Nacional, Divisão de Inteligência da Polícia Federal, Divisão de Segurança e Informações do Itamaraty, Ministério da Justiça e Casa Civil. A maior parte deles foi enviada ao Arquivo Nacional, a partir de 2005, por iniciativa da então chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, que também teve papel determinante em dois marcos para o direito à informação: a Lei de Acesso à Informação e a Comissão da Verdade, ambas sancionadas em 2011. Não é à toa que os generais sonhavam em derrubá-la.
Está cada vez mais claro que o principal objetivo dos militares ao se unir ao desprestigiado ex-capitão do Exército foi ver, na sua eleição, a possibilidade de reescrever a história para recuperar a dignidade perdida nos porões da tortura, nos corpos jogados em valas clandestinas, nas mentiras desnudadas. Mas, dessa vez, não basta queimar os documentos nem decretar sigilo de 100 anos para proteger um general. Somos todos testemunhas.
Manifestação contra a ditadura militar – Foto: Wikimedia Commons