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ARTIGO
POR – CLÓVIS BORGES*, ESPECIAL PARA NEO MONDO
Considerar a presença da provisão dos serviços ecossistêmicos, proporcionados de forma abundante pelas áreas naturais bem conservadas, como parte indissociável das atividades econômicas, nunca foi algo que consideramos suficientemente como um fator integrado à conservação dos solos no Brasil
Hoje, dia 15 de abril, é considerado o Dia Nacional da Conservação dos Solos. E a data nos convida para uma reflexão. Se considerarmos o trabalho de resgate histórico realizado pelo Geógrafo Reinhard Maack em sua emblemática publicação “Geografia Física do Paraná”, de 1968, temos que admitir que não faltaram evidências sobre os riscos decorrentes do uso indiscriminado dos solos imposto no século passado, em praticamente todas as regiões do Estado do Paraná. Este alemão, radicado no Brasil, cumpriu uma tarefa sem precedentes, descrevendo com extrema qualidade os diferentes ambientes naturais do Paraná.
Sua narrativa foi brilhantemente, acompanhada de relatos dramáticos sobre o processo agressivo de abertura de áreas para a extração de madeira e implantação de atividades agrícolas e pastoris. Maack foi um dos poucos cientistas atuantes no Brasil que, ao mesmo tempo, tinha a capacidade de interpretar a natureza e relatar suas características físicas e biológicas com enorme precisão, com uma narrativa acompanhada de percepções extremamente contundentes sobre as consequências da destruição observada em suas viagens a campo.
Anos mais tarde, em 1996, Warren Dean, historiador brasilianista, lança a obra “A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira”, e apresenta outra narrativa igualmente contundente sobre a geografia brasileira e a saga da apropriação sem controle de nossas terras, amparados com dados irrefutáveis sobre a forma irracional e agressiva de colonização do território. Uma prática imposta em nosso país sobre o Bioma mais afetado pelos primeiros séculos de desenvolvimento do Brasil, baseada na ausência de parâmetros que permitissem uma condição mínima de respeito à manutenção de áreas naturais, com todas suas consequências negativas.
Há quase 20 anos, surge uma nova publicação importante: “A Floresta com Araucária no Paraná, Conservação e diagnóstico dos Remanescentes Florestais”, de 2004, organizada por Paulo Roberto Castella e Ricardo Mirando de Britez, num esforço conjunto do PROBIO/MMA e FUPEF/UFPR. Com foco em um dos ecossistemas associados ao Bioma Mata Atlântica mais pressionados, a Floresta com Araucária, esta publicação, pela primeira vez, consegue um retrato preciso sobre a situação de seus remanescentes, com uma inédita segregação entre áreas em estágio inicial médio e avançado.
A obra encabeçada por Britez e Castella apresenta um dado extremamente dramático, indicando não existirem mais de 0,8% de remanescentes de Floresta com Araucária ainda com uma conformação dentro do enquadramento de estágio avançado de conservação. O que originalmente cobria aproximadamente oito milhões de hectares, ou um terço do Paraná, se reduziu a apenas 60 mil hectares, na forma de pequenos fragmentos isolados e em condição de extrema vulnerabilidade. Adicionalmente, este estudo apontou para uma situação ainda mais séria no caso dos Campos Naturais, que cobriam em torno de 13% do território paranaense, demonstrando que remanescentes nessa condição não ultrapassavam na época, os 0,1%.
O que podemos concluir, é que a sociedade paranaense e brasileira praticamente não tomou conhecimento destes relatos científicos tão contundentes, todos apontando para a iminência de colapso da provisão dos serviços ecossistêmicos oferecidos pelas áreas naturais. Serviços que proporcionam resiliência e longevidade às áreas de utilização para as práticas econômicas que impulsionaram, e ainda impulsionam, a economia em nosso estado. A regra do jogo foi baseada na busca contínua da supressão dos remanescentes naturais ainda existentes como fórmula de ampliar a produção, gerar desenvolvimento e dar espaço às expectativas de crescimento pretendidas.
A despeito dos regramentos legais, que foram implantados no Brasil a partir da década de 60, especialmente, com a promulgação do Código Florestal Brasileiro, as políticas públicas que foram criadas no sentido de coibir, controlar e limitar a expansão sobre áreas naturais nunca conseguiu, a bem da verdade, resultados suficientes para impedir os avanços continuados que são observados até os dias de hoje, sendo que o Paraná, considerando os últimos 30 anos, é o estado campeão de desmatamento entre os estados que estão inseridos no Bioma Mata Atlântica, segundo dados do INPE/SOS Mata Atlântica.
O grande empenho dos governos estaduais passados, a partir da década de 70, foi comprometido na forma de empréstimos bilionários a bancos multilaterais, um volume gigante de recursos voltados à proteção dos solos – uma empreitada, sem dúvida, de grande magnitude. Essa medida extrema foi plenamente justificada em função da enorme quantidade de processos de erosão, decorrente de práticas agrícolas que não estavam compatíveis com uma condição adequada, desrespeitando a necessidade de implantar curvas de nível, manter a proteção de áreas de proteção permanente (APPs) dentre outras condições inadequadas de conservação dos solos.
Outra prática reconhecida internacionalmente, em decorrência de mudanças no manejo de plantações iniciadas no estado do Paraná, foi a técnica do plantio direto, diminuindo a vulnerabilidade ocasionada pela exposição excessiva dos solos em áreas agrícolas. Não obstante, não houve foco adequado nesses investimentos, decorrentes de aportes de recursos em grande escala, para a implantação de políticas que incorporassem de forma suficiente, a manutenção e restauração de áreas naturais nos territórios atendidos.
Mesmo com todos os alertas sobre a função fundamental de uma fração adequada de áreas naturais para garantir uma condição de perenidade das atividades econômicas em geral, incluindo áreas urbanas, o cenário segue dentro de uma perspectiva de diminuição cadenciada destes remanescentes e, por decorrência, colocando em risco crescente os objetivos principais de toda a sociedade, os avanços econômicos e o bem estar.
Mais do que nunca, estamos envolvidos numa situação em que o meio ambiente nos proporciona cenários fora de contextos considerados normais. As variações climáticas deixaram de ser uma ameaça para décadas futuras. É uma realidade do dia a dia. E que têm um potencializador de grande relevância a partir da inexistência de áreas naturais em proporção adequada para promover condições de resiliência aos seguidos e cada vez mais frequentes e intensos fenômenos climáticos extremos.
Nunca houve uma condição mais consistente de contabilização (e responsabilização) dos prejuízos decorrentes dos desequilíbrios ambientais, em geral admitidos passivamente como situações eventuais e que são decorrentes de causas externas a nossas práticas. Portanto, admissíveis com plena resignação, dentro de um cenário em que tudo continuará normal depois de situações negativas pontuais e esporádicas. Estamos vivendo um momento em que a falta de lógica nessa forma de enxergar a realidade precisa ser reavaliada.
São demandadas, de forma emergencial, medidas consistentes para que uma agenda de gestão territorial seja implementada de forma a reverter desequilíbrios no uso da terra hoje presentes, considerando parâmetros da ecologia da paisagem. É fundamental o estabelecimento de ações com vistas a mitigar os efeitos que vem, em dimensões cada vez mais intensas e ainda não claramente definidas, gerando prejuízos sociais e econômicos, evidenciando a necessidade premente de mudança de rumos.
Governos, grupos setoriais e sociedade são todos responsáveis, e estão desafiados a buscar meios para mitigar os efeitos da crise ambiental vigente, causado por fatores globais e locais de forma conjunta e sinérgica. É sabido que não existem soluções simples, de curto prazo e sem um custo. Mas esse é um desafio que precisa ser assumido por todos. Nosso modelo de desenvolvimento está claramente sendo contestado por fatores concretos e mensuráveis que evidenciam a premência de novas práticas. Para isso, é necessário haver disposição para reconhecê-las e gerar as mudanças demandadas.
Considerar a presença da provisão dos serviços ecossistêmicos, proporcionados de forma abundante pelas áreas naturais bem conservadas, como parte indissociável das atividades econômicas, nunca foi algo que consideramos suficientemente como um fator integrado à conservação dos solos. Nosso futuro tem prognóstico bastante reservado, caso não existam ações que encarem o cenário vigente, estabelecendo mudanças de rumo, para obtenção de resultados na escala necessária, abandonando uma visão de desenvolvimento que já deixou de ser estratégica já há muitos anos.
*Clóvis Borges é diretor-executivo da SPVS (Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental).