Famílias tiveram casas alagadas e perderam pertences em Belford Roxo, RJ – Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
POR – LEILA SALIM, OBSERVATÓRIO DO CLIMA / NEO MONDO
Entre os 22 municípios da região metropolitana, apenas a capital tem plano de adaptação, mostra levantamento
As imagens de Norma de Morais, 70 anos, sentada em um sofá submerso em sua casa inundada no bairro Jardim América, Zona Norte do Rio de Janeiro, viralizaram nas redes sociais na última segunda-feira (15) e já se tornaram (mais) um símbolo da tragédia anunciada de todos os verões. Até o momento, o forte temporal que caiu sobre o Rio de Janeiro no último domingo (14) deixou ao menos 12 mortos e outras duas pessoas desaparecidas, além de bairros inteiros alagados, casas destruídas, linhas de ônibus e estações de trens e metrô paralisadas.
As áreas mais atingidas foram bairros da Zona Norte da capital e municípios da Baixada Fluminense. O Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, em Acari, foi inundado, ficou seis horas no escuro e precisou adiar consultas. Outros bairros, como Anchieta, Costa Barros, Jardim América, Pavuna, Ricardo de Albuquerque e Vigário Geral registraram quedas de luz, alagamentos e vias interditadas.
Os municípios de Belford Roxo, Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Mesquita, Nilópolis e São João de Meriti, na Baixada, estão entre os mais atingidos. A situação de Caxias, que registrou três das 12 mortes, está entre as mais graves: o município amanheceu nesta terça (16), dois dias após o temporal, com ao menos dois bairros totalmente alagados. Segundo a Defesa Civil, onze municípios estão sob alerta de risco moderado para deslizamentos.
As consequências das históricas lacunas nas políticas de planejamento urbano, habitação, saneamento básico, prevenção a desastres e de adaptação à crise climática fazem vítimas todos os anos, sobretudo entre a população pobre e negra. “A região metropolitana do Rio vivencia mais uma tragédia terrível, em um contexto muito grave de negligência dos gestores públicos. É um cenário recorrente de desestruturação da infraestrutura urbana para lidar com o agravamento da crise climática – não apenas no momento das enchentes, mas também após as tragédias”, afirma Larissa Amorim, coordenadora-executiva da Casa Fluminense, organização que monitora e incide sobre políticas públicas no estado.
Em 2021 e 2022, mais de 2 milhões e 200 mil pessoas foram atingidas pelas chuvas no estado do Rio. Dessas, 81% residiam na região metropolitana, que engloba a capital e outros 21 municípios no seu entorno. Os dados são do Mapa da Desigualdade do Rio de Janeiro, publicado no final do ano passado pela Casa Fluminense a partir de bases públicas. O levantamento mostrou também que, no mesmo período, 47.985 casas foram danificadas ou destruídas pelas chuvas, 16.213 delas na região metropolitana. Os danos na infraestrutura pública decorrentes de temporais somaram mais de R$ 280 milhões em todo o estado, sendo quase R$100 milhões na região metropolitana.
Em 2022, um levantamento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) mostrou que 925 mil pessoas moravam em áreas de risco para enchentes e deslizamentos no estado do Rio, estando 796 mil desses moradores concentrados na região metropolitana. A despeito dessa realidade, apenas a capital, entre os 22 municípios da metrópole, possui um plano de adaptação e mitigação das mudanças climáticas. O dado é do Painel Climático, iniciativa da Casa Fluminense para monitoramento de políticas públicas no setor. “O cenário de negligência se traduz nos números revelados pelo Mapa da Desigualdade e nas cenas que assistimos e vivenciamos nas periferias e na região metropolitana do Rio”, comenta Larissa Amorim.
Lembrando que a crise climática é um vetor acentuador de desigualdades, a coordenadora-executiva da Casa Fluminense reforça que o cruzamento de dados e perfis socioeconômicos dos atingidos pelas chuvas não deixa dúvidas sobre a incidência do racismo ambiental nas tragédias: “É preciso perguntar quem são essas pessoas e quais são as vidas mais afetadas pela negligência e ausência de políticas públicas. São as populações negras nas periferias, especialmente as mulheres negras. Há um perfil recorrente que é alvo da política de, na prática, ‘deixar morrer’”, afirma.
As figuras abaixo mostram a distribuição territorial da população do Rio de Janeiro por renda, raça e gênero:
Como exemplo do racismo ambiental no Rio de Janeiro, o Mapa da Desigualdade destaca o município de Belford Roxo, que concentrou 42% de todas as internações por doenças de veiculação hídrica registradas no estado em 2022, com 2.521 casos. “Apesar do alto número de pessoas internadas por doenças relacionadas à poluição dos rios e bacias, menos de 1% da população da cidade possui esgoto coletado e tratado”, diz Larissa Amorim.
Plano Nacional de Adaptação
Nesta terça (16), o ministro Waldez Góes (Integração e do Desenvolvimento Regional), reuniu-se com o governador do Rio, Cláudio Castro (que estava de férias quando o temporal de verão desabou sobre o estado e retornou ao trabalho ontem, segunda-feira). Sem mencionar valores, Góes anunciou que o ministério liberará “o que for necessário” à recuperação do estado. Além disso, disponibilizou uma equipe técnica, que ficará no Rio para ajudar a construir planos de emergência.
Há quase um ano, em fevereiro de 2023, a ministra Marina Silva propôs que municípios identificados pelo Cemaden como de alto risco tivessem emergência climática permanente decretada, o que facilitaria o acesso a recursos para obras de infraestrutura. A ideia foi lançada como uma das ações emergenciais para reestruturação do Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima (PNA), instituído oficialmente em 2016.
Um grupo técnico para elaboração do novo PNA foi formalizado em novembro de 2023. Apesar da expectativa para lançamento neste ano, ainda não foram divulgadas datas. Segundo Gaia Hasse, advogada com atuação em direito ambiental da rede Laclima e do escritório Toledo Marchetti, espera-se um plano integrado setorialmente e mais maduro do que o formulado para o primeiro ciclo (2016-2020).
“O governo já indicou que está trabalhando no novo PNA, e acho que podemos esperar um plano estratégico multisetorial e multidimensional. Esperamos que esse atraso na elaboração possa resultar em uma política mais madura do que o PNA do ciclo de 2016 a 2020. Elaborar um PNA é um desafio gigantesco, sobretudo quando consideramos a realidade do nosso país, com suas dimensões continentais e sua enorme diversidade, além das múltiplas vulnerabilidades e restrições orçamentárias”, afirma.
Ela destaca ainda que provavelmente o novo plano refletirá as decisões da última Conferência do Clima (COP28) quanto à meta global de adaptação. “Foram definidos sete temas principais: infraestrutura, água, comida, saúde, ecossistemas, redução de pobreza e proteção do patrimônio cultural. O novo PNA deve ir muito além disso, mas possivelmente veremos essas metas temáticas sendo atendidas também”, diz.