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ARTIGO
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Por – Daniel Medeiros*, articulista de Neo Mondo
Quando a realidade me entra pelos olhos, o meu pequeno mundo desaba. Graciliano Ramos, Angústia
Os resultados das eleições nos EUA e, de resto, a tendência política reacionária em boa parte do mundo, têm gerado uma perplexidade geral, principalmente entre as pessoas que compreendem o mundo e suas transformações: cientistas, pesquisadores, professores, enfim, intelectuais de quase todas as matizes. Estas pessoas, sob o peso de décadas de estudos e experimentos, compreendem que o mundo não suporta o modelo de consumo que existe hoje; compreendem que o mundo não dá conta de garantir o mínimo de dignidade para as pessoas com o modelo de distribuição que existe hoje; compreendem que o mundo não é capaz de manter a integridade das pessoas com o modelo de reconhecimento que existe hoje; compreendem, enfim, que o mundo está doente e que precisa, urgentemente, ir para o hospital e, logo em seguida, para o divã.
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Mas não é o que pensa a maioria dos eleitores dos Estado Unidos, por exemplo, que preferiram eleger um cidadão que despreza todos esses alertas, ignora todos os estudos importantes sobre o assunto e se preocupa apenas com uma promessa vaga de retorno nostálgico a um tempo que nunca existiu, onde ser americano era a coisa mais desejada e importante do mundo. Esse misto de niilismo, narcisismo e nostalgia é uma fórmula que, historicamente, já provou ter dado muito errado. No entanto, o negacionismo – aliado de primeira hora dos três Enes ( niilismo, narcisismo e nostalgia) – funcionou como antídoto para esse alerta da História, obnubilando os rastros dos fatos e impedindo separar a mentira da verdade, a tal ponto, que vemos hoje a mentira política desfilar sem qualquer receio de ser revelada, sem qualquer vergonha e sem um mínimo de pudor. Em Origens do Totalitarismo , Hannah Arendt já alertava: A diferença mais marcante entre os sofistas antigos e os modernos é simples: os antigos se satisfaziam com a vitória passageira do argumento à custa da verdade, enquanto os modernos querem uma vitória mais duradoura, mesmo que à custa da realidade.
A Realidade, portanto, é a grande vítima dessas vitórias, embora seus protagonistas, os cidadãos americanos comuns, não tenham a menor consciência disso. Apertados por circunstâncias econômicas que restringem seus sonhos de vida, sem compreender os mecanismos que as engendram, acreditam que a vontade de um “visionário” seja capaz de mudar os fatos e devolver-lhes o passado fugidio. Com a visão estreita , fruto de uma vida inteira sem questionamentos, esses cidadãos comparam o que havia ( no tempo em que “tudo era bom”) e o que há ( presença de imigrantes, valores não cristãos, impostos indevidos, alugueis altos, interferência no seu modo de pensar e de se exprimir) e concluem que esses fatores, uma vez eliminados, permitirão que o passado recupere o seu status de presente. E , assim, dirigem suas frustrações para esses fatos e para esses grupos , tornando o Ódio o combustível que alimenta os discursos dos oportunistas que percebem nessa dissociação do Real e nessa perigosa abertura para a Violência, a chance de chegarem ao poder. E chegaram.
Hannah Arendt afirma: Todas essas mentiras, quer seus autores o saibam ou não, abrigam um germe de violência; a mentira organizada tende sempre a destruir aquilo que ela decidiu negar.Por isso é tão comum ouvir da boca desses arautos dos “velhos tempos” a promessa de “varrer” os indesejados, de “deportar em massa” os excessivos, de “matá-los como insetos”.
Onde, nesse processo de destruição da verdade, paramos de entender? Qual foi o momento no qual desistimos de buscar separar as opiniões dos fatos, e resguardar os fatos das distorções, e reconhecer, ainda que no limite, a verdade da mentira? E agora, que assistimos ao desfile dos vivos-mortos, festejando a vitória das políticas contra o Meio Ambiente, contra a afirmação da Diferença e da Diversidade, contra a Ciência e seus aparatos de proteção da Vida, contra a Educação questionadora e plural, resta-nos o quê? A esperança de que a insistência na busca do Conhecimento e na capacidade de dizer “não” ao absurdo do fascismo no século XXI ainda sejam as trilhas a serem percorridas para não cairmos de vez no abismo do fim do mundo.? Será que há tempo e possibilidade para algum otimismo?
*Daniel Medeiros é professor e consultor na área de humanidades, advogado e historiador, Mestre e Doutor em Educação Histórica pela UFPR.
E-mail: danielhortenciodemedeiros@gmail.com
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