A língua não é apenas o que dizemos, é quem somos – Imagem gerada por IA – Foto: Divulgação
POR – OSCAR LOPES, PUBLISHER DE NEO MONDO
No coração da floresta amazônica, onde os rios entrelaçam histórias e o tempo se curva à sabedoria ancestral, uma língua quase silenciada começa a pulsar novamente.
É a língua Apiaká — semente viva da identidade de um povo que insiste em existir.
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Em um mundo que caminha acelerado para o esquecimento, a Eletrobras, em parceria com a Universidade de Brasília (UnB), a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e a Associação Indígena Apiaká Sawara (AIAS), promoveu na aldeia Mayrowi, a 300 km de Alta Floresta (MT), a 2ª Oficina de Etnolinguística de Resgate da Língua Apiaká.
Mais do que uma ação institucional, trata-se de um gesto de reconexão com a terra, com a memória e com a dignidade.
A língua Apiaká, pertencente à família Tupi-Guarani, é mais do que um sistema de comunicação: é um território imaterial.
Ela guarda cosmovisões, cantares, histórias e mitos que atravessam gerações. Com poucos falantes plenos restantes, estava em risco real de desaparecer — vítima das forças silenciosas da colonização e da homogeneização cultural.
Durante dez dias intensos, cerca de 150 indígenas das aldeias Mayrowi, Pontal dos Isolados e Matrinxã reuniram-se para fazer brotar novamente as palavras adormecidas. Em cada fonema pronunciado, uma afirmação de pertencimento. Em cada vocábulo recuperado, um ato de resistência.
Sob a condução da professora Suseile Souza, doutora em Linguística pela UnB e indicada pela própria comunidade, os participantes mergulharam nos sons e estruturas da língua — aprenderam e reaprenderam vogais, fonemas, pronomes, construções frasais.
Palavras como piraputua (boto) e jakundaí’í (jacundá) ecoaram na sala como se invocassem a ancestralidade. E não por acaso: o jacundá é, segundo o mito da criação Apiaká, o peixe que se transformou no primeiro humano do povo — metáfora perfeita do renascimento linguístico que ali se realizava.
“Essa iniciativa que estamos abraçando é para os nossos netos e bisnetos. A língua é peça fundamental da nossa identidade. Não podemos perdê-la”, afirma o professor Marcelo Iranildo Munduruku, emocionado.
Inicialmente prevista como uma simples cartilha, a ação evoluiu — por escuta e por demanda da própria comunidade — para um programa mais robusto e profundo.
“O escopo foi ampliado, com mais tempo de execução e novos produtos voltados ao fortalecimento da língua”, explica Arthur Teixeira Loiola, gerente de Meio Ambiente da Usina Teles Pires.
A proposta integra o Programa de Valorização da Cultura Indígena (PVCI), parte do Plano Básico Ambiental Indígena (PBAI) da usina hidrelétrica operada pela Eletrobras.
O projeto prevê ainda outras duas oficinas até 2026, totalizando quatro etapas de revitalização. Em cada uma delas, a memória se organiza em palavras, e as palavras se tornam ferramentas para reconstruir a autoestima coletiva, a educação e a legitimidade territorial.
“Ter uma língua ensinada na escola e registrada em cartilha é argumento a mais para a garantia do território”, reforça Suseile Souza.
Num país onde cerca de 190 línguas indígenas estão em risco de extinção, segundo a UNESCO, iniciativas como essa são mais do que urgentes: são vitais. São sementes de um futuro que respeita suas raízes.
A língua, afinal, não é apenas o que dizemos — é quem somos.
Preservá-la é manter vivo o invisível.
É fazer com que o tempo não apague aquilo que a floresta ainda sussurra.
No silêncio reverente da Amazônia, a voz dos Apiaká volta a florescer.
E com ela, floresce também a esperança de um mundo mais plural, mais justo, mais enraizado em sua própria humanidade.