Francis Bacon: O confronto entre o iluminismo e a distorção da razão contemporânea. – Imagem gerada por IA – Foto: Divulgação
ARTIGO
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Por – Daniel Medeiros*, articulista de Neo Mondo
Na primeira metade do século XVII, o inglês Francis Bacon publicou um livro, Novum Organum, no qual defendia um método de conhecimento da realidade baseado na observação cuidadosa, coleta de dados, formulação de hipóteses e, principalmente, testes rigorosos por meio de experimentos. Bacon não aceitava os padrões de conhecimento da época, marcados pela interferência religiosa e por velhos conceitos aristotélicos, que insistiam em manter o mundo inalterado, como se o mundo fosse um conjunto de dados a serem conhecidos e não a matéria-prima de uma mudança constante, aperfeiçoando nossa relação com o meio. Para o pensador inglês, “saber é poder”, e não há conhecimento sem que seja voltado para a transformação.
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Por meio da indução, a experiência poderia levar à formulação de regras gerais e à descoberta de novas formas de nos relacionarmos com a realidade. Com a repercussão de suas ideias, a vida acadêmica na Inglaterra nunca mais foi a mesma. E não é de se espantar que, um século depois, os ingleses dessem ao mundo a Revolução Industrial, na qual as máquinas ampliariam a produção e diminuiriam o sofrimento humano sob todos os aspectos.
Hoje, vivemos o ápice desse processo: a tecnologia aproxima-se do chamado ponto de singularidade, no qual as máquinas superarão a expertise humana de pensar e transformar o mundo. Além, é lógico, dos limites do próprio planeta em suportar os efeitos das transformações. Tantas vezes mexido, tantas vezes alterado, chegamos também próximos de um limite de suportabilidade ambiental, com desdobramentos possivelmente catastróficos.
Por outro lado, mesmo com uma quantidade nunca imaginada de informações à disposição, nunca se viu tamanha regressão intelectual, com a expansão de seitas religiosas e grupos defensores de ideias há muito já superadas, como o terraplanismo.
E o que explica todos esses horrores já era previsto pelo próprio Bacon, em sua obra. Trata-se do alerta que ele fez sobre as distorções da Razão, que impedem uma visão adequada da realidade e levam a decisões equivocadas sobre ela. Bacon chamou essas distorções de ídolos. Há o ídolo da tribo, ou seja, as distorções provenientes da própria natureza humana; há o ídolo da caverna, distorções resultantes de nossa educação familiar, muitas vezes marcada por referenciais dogmáticos e obscuros; há o ídolo do mercado, distorção fruto do senso comum, das opiniões, dos equívocos da linguagem, da falta de compreensão adequada dos fatos; e, por fim, o ídolo do teatro, isto é, as ideologias filosóficas, políticas e religiosas que pervertem tudo e impedem tantas coisas.
É relativamente fácil culpar o progresso pelas mazelas do presente; culpar a própria tecnologia; culpar a ambição humana em querer transformar o mundo e torná-lo mais adequado aos nossos interesses. No entanto, se a Razão estiver livre das distorções, dificilmente ela deixaria de perceber esses perigos e procuraria evitá-los — como muitos políticos, empresários e intelectuais buscam fazer. O problema é que descuidamos dos efeitos das distorções da Razão nas pessoas, e elas tornaram-se um exército, uma legião de incontáveis membros. E chegamos onde chegamos. A corrida por diminuir a influência funesta desse contingente imensurável é urgente, e devemos ter a consciência de que pode ser inútil. Mas, mesmo assim, não se pode desistir. Nem, por outro lado, jogar a água do banho com o bebê dentro. A saída não é uma volta para a floresta. A saída está onde sempre esteve: no brilho e na capacidade humana de pensar e de usar, em prol do bem comum, a sua inteligência, a sua racionalidade. A saída é combater, com todas as forças, as distorções da Razão, que a tornam capaz das maiores rapacidades.
Como afirmou Francis Bacon:
“Os ídolos e noções falsas que agora possuem o intelecto humano e nele se enraizaram profundamente não só assediam de tal modo os espíritos dos homens que a verdade dificilmente pode encontrar entrada, mas, mesmo depois de admitida, novamente, na própria instauração das ciências, nos encontrarão e nos perturbarão, a menos que os homens, precavendo-se tanto quanto possível, se armem contra eles.”
Esse é o recado do século XVII. Que o século XXI saiba ouvi-lo.
*Daniel Medeiros é professor e consultor na área de humanidades, advogado e historiador, Mestre e Doutor em Educação Histórica pela UFPR.
E-mail: danielhortenciodemedeiros@gmail.com
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