POR – MÁRCIO THAMOS
No século XVIII, o culto da razão cunhou a designação de homo sapiens (literalmente, “o homem que sabe”) como expressão capaz de definir a nossa.
De lá para cá, outras denominações importantes foram propostas: homo faber (“o homem que fabrica”) e homo ludens (“o homem que brinca”). Sapiens é característica relativa ao espírito e sua capacidade racional. Faber diz respeito à habilidade de fazer coisas a partir da inteligência. E ludens, qualidade que se contrapõe ao caráter utilitário de Faber, contesta, ao mesmo tempo, a primazia da razão como virtude essencial do homem.
Três expressões distintas, que de certo modo se completam, pondo em destaque algum predicado típico da raça. Mas estão todas, implícita ou explicitamente, ligadas aos atributos da mente humana. Parecerá ingênuo perguntar, ainda assim vou insistir: e o corpo? Não há nada ligado mais diretamente ao corpo do homem que, em certa medida, nos possa definir como espécie? A resposta imediata e ululante é “não!”.
Biologicamente falando, as características do corpo só nos permitem ser classificados como “mamíferos” ou “bípedes”, por exemplo, e não fornecem nenhum traço determinante para nos diferenciar como “humanos” em relação aos outros animais. Mas todo corpo, a fim de perdurar e se desenvolver, deve ser alimentado. Trata-se de uma constatação também óbvia demais. Não obstante, dela se extrai um termo de comparação capaz de definir a espécie humana a partir de um fenômeno não diretamente relacionado à mente, mas, antes, ao próprio corpo, através do paladar, qual seja a culinária.
Natureza e cultura são conceitos que se opõem mutuamente. Pertence ao domínio da cultura tudo aquilo que foi de algum modo transformado pelo homem e tudo aquilo que não é hereditário, mas sim transmitido e aprendido pelas gerações humanas. Como animais, pertencemos ao domínio da natureza. Como humanos, nos inserimos no domínio da cultura. A idéia de humanidade, portanto, se confunde com o próprio conceito de cultura.
Foi Claude Lévi-Strauss quem primeiro observou que, do mesmo modo como não existe sociedade humana sem linguagem verbal, também não existe sociedade humana que não elabore, vale dizer, que não transforme, em parte ao menos, seu alimento cozinhando-o. Assim, o cru e o cozido, o alimento natural e aquele transformado pela ação do homem, estão para natureza e cultura como um dado distintivo entre animalidade e humanidade. Mas, para cozinhar, foi preciso primeiro dominar o fogo.
É bem conhecido o mito de Prometeu, um primo de Júpiter (Zeus), que o grande deus olímpico castigou mandando acorrentá-lo a um rochedo, onde todos os dias uma águia devorava-lhe o fígado, que à noite se regenerava. O crime de Prometeu foi justamente ter roubado aos deuses sementes do fogo para dar aos homens. E esse presente, segredo divino assim compartilhado, acaba alçando o bicho homem de sua humilde e primitiva condição animal. Na verdade, o mesmo Prometeu criara o homem, modelando-o à semelhança dos entes imortais, a partir da terra molhada pelas águas dos rios. Mas a criação de Prometeu só está completa quando o homem recebe o fogo, cujo domínio distingue a humanidade ao possibilitar, entre outras artes, a distinção entre o cru e o cozido, de que falava Lévi-Strauss.
Assim, posso aqui seguramente arriscar uma nova definição para a raça: homo coquens, isto é, “o homem que cozinha” (e, se não vingar como a de homo sapiens, será por pura implicância da intelectualidade temerosa de perder seu prestígio).
* Doutor em Estudos Literários, Professor de Língua e Literatura Latinas junto ao Departamento de Lingüística da FCL-UNESP/CAr e Coordenador do Grupo de Pesquisa LINCEU – Visões da Antiguidade Clássica.