O constitucionalista José Afonso da Silva, 91 anos, foi homenageado – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
POR – LUIZ ROBERTO SERRANO, JORNAL DA USP / NEO MONDO
Nas Arcadas do Largo São Francisco, a sociedade se manifestou amplamente pela normalidade democrática
Uma homenagem, em particular, tocou-me na primeira parte da cerimônia de leitura das Cartas pela Democracia, realizada neste 11 de agosto, no auditório lotado da Faculdade de Direito da USP: a prestada ao Constitucionalista José Afonso da Silva, 91 anos. Por uma razão histórica que, para mim, conectou o ato realizado, nesta quinta-feira, nas Arcadas, à Campanha das Diretas nos idos de 1983 e tudo o que veio depois.
Eu fazia assessoria de comunicação para o saudoso deputado Ulysses Guimarães, do PMDB, que comandava aquela jornada cívica e, sempre que precisava de luzes jurídicas para encaminhar uma decisão, pedia para seu assessor de todas as horas, Osvaldo Manicardi: “Ligue para o professor José Afonso”. E o homenageado de hoje nas Arcadas o orientava sobre as decisões jurídicas a tomar naquele desafiante momento político da vida brasileira.
Emoções de sobra
Emoções houve, de sobra, em vários momentos. Naqueles em que o Hino Nacional foi tocado, as plateias que se dividiram entre o Salão Nobre da escola, o pátio da faculdade e o Largo São Francisco o entoaram a todo vapor e entusiasmo, além do habitual. Não foi uma interpretação rotineira. Foi além disso.
final, estava reunida naquele espaço histórico uma rara frente política que somou as universidades públicas do Estado de São Paulo, o empresariado, os sindicatos de trabalhadores e movimentos representativos de um sem número de setores sociais – amálgama que não tem sido comum há tempos. E os presentes demonstravam estar imbuídos da importância e de quão especial, na história recente do País, estava sendo aquele ato.
“Todos nós estávamos esperando por algum movimento, alguma sinalização que nos congregasse em torno de uma causa”, disse ao Jornal da USP, em reportagem recente, a professora Nina Ranieri, da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Os riscos gerados pela pandemia do coronavírus e todas as cautelas que impôs à população desestimularam, até recentemente, as manifestações públicas dos opositores às questionáveis ações que o governo gerava, e ainda gera, em Brasília. O próprio Congresso parecia, e ainda parece, imobilizado diante das políticas erráticas que nascem no Palácio do Planalto – ao contrário, boa parte dele colabora e se beneficia delas.
Uma carta que funcionou como um imã
O passo em falso do presidente Bolsonaro ao criticar o processo eleitoral brasileiro diante do colégio de embaixadores das nações do mundo, em reunião em Brasília, aparentemente, foi o estopim que estimulou correntes oposicionistas de todos os matizes a se amalgamarem a partir da iniciativa da Faculdade de Direito de produzir a Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito, que funcionou como um imã. Dela nasceu a carta Em Defesa da Democracia e dos Direitos, a primeira já com 1 milhão de assinaturas, a segunda subscrita por 107 entidades como a Fiesp (da indústria paulista), a Febraban (dos bancos), sindicatos trabalhistas e muitas mais.
A heterogeneidade das entidades e dos presentes ao ato de leitura das cartas demonstrou a amplitude do repúdio, na sociedade brasileira, a qualquer manobra que arranhe, prejudique, interrompa a normalidade das próximas eleições gerais que serão realizadas no País, cujo instrumental, as urnas eletrônicas, prestam excelentes serviços à democracia brasileira, jovem de 37 anos.
A luta capitaneada, entre outros, por Ulysses Guimarães, pelas Diretas Já, na qual pedia conselhos jurídicos ao homenageado José Afonso da Silva, era por eleições diretas, nas quais a população desejava eleger seus governantes. Foi dura, fez vítimas, foi eivada de obstáculos e conseguiu que o pleito fosse decidido pelo Colégio Eleitoral, ainda não diretamente pela população. Mas marcou o fim do regime militar.
A de hoje, pelas quais milhares de vozes se manifestaram, nesta quinta-feira, 11 de agosto, é pela manutenção intacta do atual sistema das eleições diretas e sua tecnologia, que tantos bons serviços têm prestado à sociedade brasileira, desde que entrou em uso, alicerçando a democracia brasileira.
Mas pode não terminar por aí. Afinal, o que se esconde, por detrás da desconfiança alimentada pelo Palácio do Planalto, a respeito da confiabilidade do já tão comprovado e eficiente sistema eleitoral brasileiro? Questionar os resultados das próximas eleições, dependendo de para onde ele apontar?
“A universidade brasileira é o oposto do autoritarismo”
As palavras do reitor Carlos Gilberto Carlotti Junior na abertura do evento
Prezado professor Campilongo, em nome de quem saúdo a comunidade da São Francisco e todos os presentes.
É uma honra estar ao lado de vocês nesta reunião histórica, mas também um dever com a sociedade paulista e brasileira.
Estamos aqui, em união, para defender a democracia. Estamos aqui para defender a Legislação Eleitoral, a Justiça Eleitoral e o Sistema Eleitoral com as Urnas Eletrônicas.
Que a vontade do povo brasileiro seja respeitada e seja soberana.
Falo aqui em meu nome pessoal, como professor universitário, mas também em nome da Universidade de São Paulo. Por delegação, represento, ainda, o reitor da Unicamp, Tom Zé, o da Unesp, Pasqual Barretti, o da UFABC, Dácio, o da Unifesp, Nelson, e a reitora da UFSCar, Ana Beatriz.
Queremos eleições livres e tranquilas. Queremos um processo eleitoral sem fake news, pós-verdades ou intimidações.
A universidade brasileira é o oposto do autoritarismo. A universidade é a casa da pesquisa e do conhecimento. A universidade cultiva o pensamento crítico e diverso, assim como cultiva a ciência, a filosofia e as artes.
A USP, a Unesp e a Unicamp têm o compromisso de vida com a liberdade acadêmica.
Nós não queremos o arbítrio. Nós, da USP, perdemos vidas preciosas durante um período de exceção. As cicatrizes ainda são visíveis. Vidas que foram ceifadas pela repressão ao livre pensamento.
Nesse período, perdemos 47 pessoas que eram parte da nossa comunidade. Nós não esquecemos e não esqueceremos.
Aqueles que rejeitam e agridem a democracia não protegem o saber, a ciência, o pensamento e não amam a Universidade.
Nós da USP, da Unesp e da Unicamp somos partidários da democracia e da liberdade.
Após 200 anos de independência do Brasil, deveríamos estar pensando em nosso futuro, em como resolver problemas graves, por exemplo, da educação, da saúde e da economia, mas estamos voltados a impedir retrocessos. Espero que esta mobilização nos coloque novamente no caminho correto, na discussão do futuro de São Paulo e do Brasil.
Aqui, no chão do nosso Território Livre, nos domínios do Largo São Francisco, território da USP e da universidade brasileira, nós afirmamos que o destino que queremos é de uma vida digna da nossa gente: Estado Democrático de Direito Sempre.
Sejam bem-vindos e bem-vindas na tradicional São Francisco e na USP.
Comissão da Verdade da USP apurou graves violações de direitos humanos
Durante sua fala, o reitor Carlos Gilberto Carlotti Junior fez menção à perda de 47 pessoas que faziam parte da comunidade universitária durante a ditadura militar.
O dado teve como fonte o relatório da Comissão da Verdade da USP, divulgado em maio de 2018. A comissão foi criada em 2014 com o objetivo de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos, praticadas durante o período de exceção que vigorou no País entre 31 de março de 1964 e 15 de março de 1985, contra docentes, alunos e funcionários não docentes da Universidade.
Dentre os 47 casos citados no relatório da Comissão, 39 eram alunos, seis eram professores e dois eram funcionários, dos quais 37 eram homens e dez eram mulheres. “Cada um dos jovens que teve a sua vida interrompida merece ser lembrado não apenas como um nome na memória histórica, mas também como participante vigoroso da História do Brasil vinculado à USP. […] grande parte desses jovens acreditava na revolução como forma de transformar rapidamente a sociedade”, diz o documento.
Acesse aqui a íntegra do relatório da Comissão da Verdade da USP.
A lista dos oradores mostram amplitude no apoio às Cartas
1. Carlos Gilberto Carlotti Júnior, Reitor da Universidade de São Paulo;
2. Oscar Vilhena Vieira, advogado e membro da Comissão Arns e Membro do Comitê do Manifesto
3. Arminio Fraga, fundador do Instituto para Políticas de Saúde
4. Telma Aparecida Andrade Victor, secretária de Formação da CUT SP
5. Raimundo Bonfim, coordenador nacional da Central de Movimentos Populares (CMP)e Frente Brasil Popular
6. Beatriz Santos, Coalisão Negra pelo Direito
7. Horácio Lafer Piva, presidente do Conselho Deliberativo período 2021-2022 da Indústria Brasileira de Árvores (Ibá)
8. Neca Setubal, presidente do Conselho Consultivo da Fundação Tide Setubal
9. Canindé Pegado, União Geral dos Trabalhadores (UGT)
10. Patrícia Vanzolini, presidente da seccional de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)
11. Débora Lima, coordenadora de Movimento da Frente Brasil sem Medo
12. Miguel Torres, presidente da Força Sindical, Sindicato dos Metalúrgicos de SP e Mogi das Cruzes e CNTM
13. Bruna Brelaz, amazonense, estudante de direito e presidenta da UNE
14. Celso Campilongo, diretor da Faculdade de Direito da USP