Foto – Pixabay
ARTIGO
Os artigos e informes publicitários não representam necessariamente a posição de NEO MONDO e são de total responsabilidade de seus autores. Proibido reproduzir o conteúdo sem prévia autorização
Por – Luciane Moessa*, especial para Neo Mondo
A associação Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS), cuja missão é promover o alinhamento entre o setor financeiro e o Desenvolvimento Sustentável, tem como uma de suas estratégias mostrar “em que página estamos desse livro”, um livro/jornada que poderia se chamar “deixar de financiar uma economia que causa enormes danos ambientais, sociais e climáticos para passar a financiar uma economia que cause cada vez menos danos e traga cada vez mais benefícios e resiliência para lidar com desafios ambientais, sociais e climáticos”. Trata-se de um caminho muito falado, mas ainda pouco trilhado, já que convivemos com muitas narrativas de greenwashing qualitativo ou quantitativo.
No qualitativo, benefícios ambientais ou sociais de projetos ou empreendimentos são exaltados sem que os impactos negativos tenham sido identificados e mitigados – eles podem estar “escondidos” na cadeia de produção (como nos casos de trabalho análogo ao escravo ou infantil, ou no caso do desmatamento), ou no ciclo de vida de um produto ou serviço (por exemplo, paineis solares e baterias de carros elétricos são produzidos a partir de uma certa matéria-prima e precisam ter uma destinação após sua vida útil). Já no quantitativo, às vezes uma iniciativa pouco relevante em termos do conjunto de operações de uma empresa ou instituição financeira merece atenção desproporcional, descolada de uma visão do todo, em razão de ações de marketing.
Para mostrar em que página estamos no setor financeiro, criamos o RASA – Ranking da Atuação Socioambiental de instituições financeiras, que busca funcionar como antídoto contra qualquer espécie de greenwashing nos diferentes segmentos do setor financeiro e também como diagnóstico e guia para transformação, para lermos e virarmos mais diversas páginas, ou darmos diversos passos à frente nesse caminho. Avaliamos 175 itens, em 11 seções diferentes, cada uma com peso proporcional à sua relevância, conforme metodologia abrangente e aprofundada que passou por consulta pública em 2022. No ciclo do RASA encerrado em abril, avaliamos as instituições financeiras de desenvolvimento (IFDs).
No caso do setor financeiro, os investimentos necessários para a incorporação de fatores ambientais, sociais e climáticos em sua forma de atuação são mínimos, se comparados a setores da economia real: requer-se basicamente a construção de equipes capacitadas e um processo decisório e técnico inteligente, pois a maior parte dos dados socioambientais relevantes são públicos e gratuitos e, quando não o são, as instituições financeiras desfrutam da posição privilegiada de poderem pedir praticamente qualquer informação relevante para potenciais tomadores de crédito, segurados ou empresas receptoras de investimentos. Basta saber onde buscar as informações, o que perguntar e o que fazer com elas.
Quando verificamos, com o RASA, que a maioria das instituições financeiras de desenvolvimento (bancos de desenvolvimento e agências de fomento) brasileiras nem sequer verificam indicadores socioambientais específicos por setor econômico, e que a sua oferta de produtos financeiros com impacto ambiental, social ou climático positivo ainda é mínima em comparação com o volume do financiamento da economia tradicional (aquela que nos trouxe até essa situação de emergência climática e degradação socioambiental crescente), percebe-se que ainda faltam muitas páginas do tal livro!
A nota mais alta obtida nessa primeira avaliação foi de 29,1, para o BNDES, num máximo de 100. Muitas vezes, o problema é de pouca transparência. Há situações em que essa é menor do que para grandes bancos privados (avaliados no primeiro ciclo do RASA, em 2022), em razão de esses preencherem questionários e relatórios relacionados a iniciativas de investidores, como o CDP ou o Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE) da B3, que constituem fonte adicional de informação, para além de seus próprios websites e relatórios.
Em temas como frequência de monitoramento de riscos socioambientais ou relevância da avaliação de riscos socioambientais no processo decisório, ou ainda mitigação de riscos dessa natureza, pode ser que existam ações adotadas que nem são divulgadas, nem foram informadas à SIS na fase de interação com as IFDs – uma etapa necessária da metodologia. Outras situações resvalam para a ausência de aderência a regras que já constam das normas do Banco Central sobre o tema – em 2021, foi editado um conjunto de regras a respeito que veio a substituir a norma de 2014 sobre o tema, e que, entre outros avanços, definiu claramente o que são riscos ambientais, sociais e climáticos.
Ocorre que nem sempre os temas ali listados estão incluídos nas Políticas das IFDs brasileiras (mesmo aquelas já atualizadas após a edição da nova norma). Mais grave do que isso, assim como no universo dos bancos comerciais, são muito poucos os temas previstos nas Políticas para os quais se encontra evidências de que ocorre consulta a fontes de informação relevantes, mesmo quando se trata de informações sobre cumprimento de normas ambientais ou sociais.Se formos considerar informações que permitam aferir a eficiência ou o grau de desempenho ambiental, social e climático (tema também incluído na regulação do BC), que tem reflexos inclusive financeiros (como a eficiência energética ou a eficiência hídrica, para ficar nos exemplos mais óbvios), mais distante ainda está o praticado do efetivamente necessário.
Na média, 20 a 25% dos temas relevantes recebem a devida atenção, sendo que, quando se trata de riscos específicos de um setor econômico, a chance de não serem avaliados é bastante grande. Uma exceção positiva é a Agência de Fomento do Amazonas, AFEAM, que tem critérios diferenciados para a profundidade de avaliação dos riscos e temas, conforme os setores econômicos envolvidos – a AFEAM foi a IFD com a nota mais bem alta no universo da concessão de crédito. Existe também muito pouca divulgação de informações sobre o nível de riscos socioambientais e climáticos do portfólio (conjunto de operações de crédito ou de investimentos). Basicamente, divulga-se o setor econômico, havendo pouca informação sobre o valor exato ou percentual das operações com impacto ambiental ou social positivo (uma das exceções é o BDMG). Nem sequer fica claro, tampouco, qual o universo de transações financeiras avaliadas quanto ao risco ambiental, social e climático.
Merece destaque, nesse tema, o impacto que a existência de regras mais claras na regulação como bases de dados a serem consultadas e conhecimento do local exato da operação financiada, produz.No caso do crédito rural, pelo fato de haver parcela de destinação de recursos públicos a ele (ainda que a maioria sejam privados) e de as instituições financeiras terem que cumprir uma quota mínima de operações dessa natureza, a regulação bancária sempre foi mais detalhada, e isso implica em que as instituições financeiras efetivamente consultam as bases de dados exigidas (como o CAR e a lista de áreas embargadas pelo IBAMA), para todas as operações. Já para todas as demais, as consultas costumam ser incompletas, desconsiderando, por exemplo, bases de dados estaduais, que são fundamentais na esfera ambiental.
A SIS lançou em março um estudo com recomendações para que a regulação bancária seja aprofundada nesse e outros temas, já que as falhas de mercado são bastante evidentes, demandando atuação mais incisiva do Banco Central. Enquanto isso, também estamos contribuindo com um mapeamento de indicadores socioambientais e climáticos por setores econômicos, que em breve será colocado gratuitamente à disposição de instituições financeiras brasileiras.
*Luciane Moessa, PhD, é Diretora Executiva e Técnica da SIS.