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POR – OSCAR LOPES, PUBLISHER DE NEO MONDO
Hoje, temos o prazer de receber *Renato Bulcão, renomado professor e pesquisador no campo das tecnologias aplicadas à educação, para discutir seu mais recente trabalho, o livro “Tratado da Má Educação”. Publicado no final de 2023, este livro mergulha fundo nos últimos 100 anos de história educacional no Brasil, expondo as raízes do preconceito e autoritarismo presentes em nossas escolas e destacando os desafios cruciais, como a evasão escolar e a má qualidade do ensino.
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Renato, muito obrigado por se juntar a nós hoje. Para começar, poderia nos contar um pouco sobre como surgiu a ideia de escrever o livro “Tratado da Má Educação” e qual foi a motivação por trás dessa iniciativa?
Renato Bulcão – A motivação foi claramente a confusão entre o que é educação e o que é cultura, que virou campo de batalha entre a esquerda e a direita. Líderes de esquerda e de direita educam seus filhos em escolas de rico. Mas querem determinar a educação oferecida aos pobres.
O problema, que abre inclusive o livro, é que em 20 anos de governos de esquerda, a educação deles criou mais pobreza, e o grande exemplo é a favela Sol Nascente em Brasília, hoje a maior do Brasil. Então toda essa ideologia de formação de aluno crítico está sendo usada para justificar a existência de um modelo de escola de elite que educa a esquerda.
A direita se contenta em ensinar a mesma coisa que era ensinado há quase 100 anos atrás, quando houve uma reforma do ensino na década de 1932 durante a ditadura de Getúlio Vargas, comandada por um
padre. Para as propostas da esquerda e da direita dei o nome de Má Educação, pois o resultado é a manutenção da cultura da pobreza em larga escala.
Pode nos contar um pouco sobre a abordagem histórica e política adotada na análise dos últimos 100 anos da educação pública brasileira?
No Império só era educado quem ia estudar em Lisboa. O máximo que se recebia no Brasil era o básico, ler, escrever e alguma matemática básica nos colégios religiosos que eram na maioria internatos para meninos ricos.
Com D João VI foram fundadas faculdades de medicina e escolas militares. Com D Pedro I surgiram as faculdades de direito sob influência da maçonaria. A importância do Colégio Pedro II foi justamente dotar o Brasil da primeira escola para a classe média que ia até o que hoje chamamos de ensino médio.
Com a República veio a necessidade do voto. O cidadão tinha de ser proprietário e não ser analfabeto para poder votar, seguindo um dos muitos costumes da época. Então começaram as primeiras iniciativas de fazer uma escola pública para aqueles que deviam votar.
Na década de 1930 começou-se a pensar no resto das pessoas e cada reforma seguinte veio incluindo mais gente. Mas só agora no século 21 alcançamos todas as classes sociais.
Em sua pesquisa, você comparou as práticas educacionais do Brasil com as de outros países, como China, Japão, Espanha e Finlândia. Quais foram as principais diferenças e semelhanças encontradas?
Todos os países estrangeiros que citei pensaram no custo-benefício da educação. Queremos mais trabalhadores não especializados, ou queremos engenheiros para tecnologia de ponta? Todos precisam de universidade? A universidade deve formar majoritariamente que tipo de aluno?
Vou dar um exemplo: quando estive em 2015 num congresso de educação em Shanghai, assisti uma exposição do planejamento da escola de engenharia de computação. O sistema adotado era o EAD e o
público-alvo eram os camponeses com uma educação rudimentar que tinham vindo para a cidade trabalhar na construção civil.
Eles já sabiam que o boom imobiliário chinês tinha prazo de validade e essas pessoas não iam poder ficar vagando pelas ruas. Desenvolveram um curso EAD exclusivo para os alunos aprenderem Java e Javascript.
Com isso ganhavam um diploma universitário, mas na verdade, estavam fazendo um curso profissionalizante. Menos de 10 anos depois, a China tem milhares de programadores de app de celulares, enquanto essa mão de obra falta em outros países.
A Espanha está fazendo o caminho inverso: depois de alcançar aproximadamente 60% de universitários na sua população, agora o país está piorando o nível da escola pública em geral. Isso porque esse excesso de universitários criou uma geração nem estuda nem trabalha, pois eles não querem fazer o trabalho que o povo que chega através da imigração legal e ilegal aceita fazer.
O Japão até hoje insiste na decoreba e em valores coletivos. A Finlândia pelo contrário, espera uma educação menos dirigida, com forte incentivo ao individualismo da descoberta das virtudes e vocações naturais dos alunos. O que há em comum entre todos eles, é que essas metas são fixadas como política de governo.
Um dos aspectos abordados no livro é a inadequação das salas de aula brasileiras para receber os alunos. Como essa realidade afeta o processo de ensino e aprendizagem?
Na escola se aprende o código para se lidar com todos os demais códigos.
A escola é o primeiro exemplo do que o estado oferece ao cidadão. Se o banheiro está limpo e funcional, se as carteiras são limpas e as salas varridas diariamente, se a lousa é lavada ou se a grama foi cortada e se existem brinquedos seguros e quadras de esporte, tudo isso afeta a experiência do aluno com o aprendizado e com o trato do poder público.
Se pode deixar o portão quebrado, então por que não pode roubar o computador? Se pode comprar drogas sob o olhar complacente da segurança, por que não se pode ganhar dinheiro com isso?
O abandono escolar é um dos grandes desafios enfrentados pelo sistema educacional brasileiro. Quais são as principais causas desse problema, na sua visão, e como ele impacta a sociedade como um todo?
Dos principais motivos para a evasão escolar, os mais culpados são a necessidade de trabalhar (39,1%) e a falta de interesse (29,2%). Entre as meninas, destaca-se ainda a gravidez (23,8%) e os afazeres domésticos (11,5%) quando o abandono escolar coincide com a quantidade de mulheres que são domésticas, a maioria preta.
Os jovens homens de baixa escolaridade são presos ou assassinados, principalmente os pretos e os números de evadidos tem relação direta com o número de adolescentes e jovens adultos detidos.
O abandono acontece em três momentos distintos: na passagem do Fundamental 1 para o Fundamental 2, e o motivo maior é a falta de entendimento dos alunos do que está sendo ministrado em sala de aula.
Os alunos não entendem o contexto da cultura que propõe aquela educação. É algo parecido com que acontece quando se oferece a educação urbana para povos originários e quilombolas.
No final da 8ª série abandonam porque os alunos precisam trabalhar e sabem que não chegarão na universidade, e finalmente a evasão alcança 20% no final do 1º ano do Ensino Médio, quando os alunos já
entenderam que aquela educação não é para eles.
No Brasil temos uma cultura que propõe educação pensada para rico e oferecida para o pobre como se tudo pudesse existir com diversos contextos sociais da mesma forma. Essa é a maior miopia da esquerda.
Ainda estamos pensando a educação com uma proposta cultural igual a dos fundadores da República – excludente.
Você mencionou a questão do preconceito e do autoritarismo arraigados nas escolas brasileiras. Como esses elementos influenciam o ambiente educacional e quais são suas consequências?
Uma coisa que ninguém fala é que toda política que prejudica a educação, prejudica diretamente a cidadania feminina.
As mulheres são mais de 90% dos trabalhadores da educação, da creche à pós-graduação. Então promulgar leis e manter salários baixos é sempre uma política que visa impedir o empoderamento das mulheres.
Não é à toa que a extrema-direita vem com a ideia de escolas miliares, onde a maior parte dos professores são homens. O autoritarismo se percebe na forma em que toda a legislação obriga
mudanças de postura em sala de aula, além da adoção de inovações sem nenhuma preocupação em capacitar as professoras.
Os salários também são achatados porque são pagamentos para mulheres. Mesmo com o piso mínimo obrigatório, os governadores e prefeitos já encontraram uma forma de contratar professoras temporariamente com meio-expediente para manter o salário delas abaixo de R$ 3.000,00.
Em algum momento o feminismo vai alcançar essas professoras que são aproximadamente 2 milhões de trabalhadoras. No fundo, o autoritarismo que encontramos é puro machismo dos operadores de Brasília e das capitais.
Em relação aos interesses políticos na educação, poderia explicar como isso se manifesta e qual é o impacto desses interesses no desenvolvimento do sistema educacional?
Simples, na República existem duas formas de controle do povo: o voto ou a polícia.
Educar um aluno custa mais barato do que manter um preso. Mas manter um preso gera contratos de maior valor do que manter um aluno. Então o interesse político fica claro.
Recentemente o Gilberto Kassab disse que como só existem 5 ideologias, ele não entende por que existem muitos partidos. Quando era deputado federal, o Zé Dirceu disse que no Brasil todo capital vem
do estado, porque o mercado é pequeno.
Realmente o Kassab tem razão, pois o espectro político se faz com a extrema esquerda, a esquerda, o centro, a direita e a extrema direita. Os demais partidos só existem para que alguém abocanhe um pedaço de capital do estado. A maioria masculina.
Escolas e prisões sempre vão existir, portanto, são uma boa fonte de buscar capital junto ao estado. O terceiro é a saúde, depois que houve o fortalecimento do SUS.
Como podemos trabalhar para mudar esse cenário e promover uma educação mais inclusiva e de qualidade para todos os brasileiros?
Primeiro temos de começar a pensar regionalmente. Cada região tem características econômicas diferentes e precisa de recortes diferentes de trabalhadores.
Educando para necessidades imediatas, como por exemplo cursos técnicos de turismo no Nordeste, abrimos espaço para uma empregabilidade mais qualificada, com consequente aumento de fluxo
de capital e no final, maior arrecadação regional.
Mas as necessidades do Acre, de Santa Catarina e do Amapá são diferentes.
Não vamos conseguir resolver a educação com uma prática de ensino centralizada que privilegia alunos críticos que almejam a liberdade do ser e o ensino universitário. Trabalhador também é feliz, se puder ter
casa própria e comida na mesa.
O que a esquerda não entendeu também, é que oferecer educação de rico para o pobre joga o aluno no sistema de competição neoliberal porque é a consequência natural de quem vive e aprende nesse contexto cultural, presente na Vila Madalena e no Leblon.
Você mencionou que as escolas públicas muitas vezes não recebem a manutenção adequada. Como isso afeta diretamente os estudantes e professores, e o que pode ser feito para melhorar essa situação?
No momento em que as escolas evitarem diretores designados por indicação política e tonarem isso uma categoria a parte, e as fundações e demais entes privados interessados em educação operem no auxílio
da administração das escolas, como o Governo de São Paulo está propondo agora, teremos o banheiro funcionando e a grama cortada.
Não vejo problema em parcerias público-privadas, mas não para vender quinquilharia eletrônica para ganhar em cima do capital estatal. As escolas não podem ser a filial da Galeria Pajé.
Por outro lado, o sistema jurídico-legal que rege uma escola no Brasil é tão detalhista que são necessários contadores e advogados para que uma gestão bem-sucedida não vá parar no Tribunal de Contas por boa
fé dos diretores.
Equilibrando o quadro docente voltado para um ensino pragmático e regionalizado, diretores, professores e alunos vão encontrar o cenário adequado para sua interação.
Finalmente, qual é a mensagem principal que você gostaria que os leitores tirassem do seu livro “Tratado da Má Educação”?
O primeiro Tratado está muito acadêmico. Portanto escrevi o Segundo Tratado da Má Educação que vai direto ao assunto.
Se o leitor quiser apenas as propostas práticas, estão lá organizadas em resumos de cada capítulo.
A linguagem do Segundo Tratado está mais facilitada. O público-alvo são as professoras e os pais de alunos, da creche ao ensino médio.
Gostaria que os leitores percebessem que os governos vêm enganando a maioria das pessoas há muito tempo, e que toda dificuldade pessoal de cada brasileiro no que diz respeito ao entendimento da realidade foi decorrente da Má Educação que recebeu na escola.
O político rouba porque foi mal-educado. O ladrão rouba porque foi mal-educado. O funcionário público te recebe com desdém porque foi mal-educado. O policial te trata como inimigo porque foi mal-educado. Temos de acabar com a Má Educação.
*Renato Bulcão é formado em Filosofia pela USP, onde foi professor e pesquisador por 14 anos. Tem Mestrado em Comunicação pela USP e Doutorado em Educação e História da Cultura pelo Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Foi pioneiro em sistemas de comunicação para EAD e em 2009 transferiu-se para o ensino privado com atuação na UNIP, onde ajudou a formar cerca de 40% dos atuais professores do Ensino Básico do Estado de São Paulo; e na Yduqs para onde foi transferido com a aquisição da Adtalem, onde atuava como Coordenador de EAD da Wyden. Nesse sentido, cuidou do processo de ensino-aprendizagem de
cerca de 15 mil alunos no total, a metade em licenciaturas.