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ARTIGO
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Por – Daniel Medeiros*, articulista de Neo Mondo
Moro em Curitiba há 43 anos. Quando cheguei do Nordeste nesta cidade, a primeira coisa que me chamou a atenção foi a organização e a limpeza. “Sul Maravilha”, pensei, repetindo a frase que ficou famosa na boca da Graúna e do bode Orellana, personagens do memorável Henfil que eu lia com a voracidade de um jovem querendo saber tudo do mundo. O sul do Brasil foi muito generoso comigo: deu-me amigos, estudo, trabalho, família e até apagou meu sotaque carregado , substituindo-o por algo entre o gaúcho e o mineiro. O nordestinês às vezes reaparece nas festas, depois de umas cervejas, quando a cortina da formalidade se desmancha um pouco, a lembrar do moleque que corria nas ruas da vila, de pés descalços, sem camisa, subindo nas árvores para pegar frutas ou cortar galhos para fazer estilingues.
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Mas nem tudo foram flores, devo confessar. Na escola privada onde meu pai me colocou para que eu tivesse o melhor estudo, logo fui cercado de olhares-muro, definindo com clareza que eu não era dali e que era apenas suportado. Apesar de o professor dizer o meu nome todo dia, na chamada, fiquei indefectivelmente marcado pelo apelido “Ceará”, repetido com uma certa dose de sarcasmo, como se eu fosse um produto que não deveria estar exposto naquela vitrine de classe média branca e com sotaque de “leite quente”, legítimos herdeiros da tradição europeia, com seus sobrenomes alemães, italianos, poloneses e ucranianos. Curioso que minha família é também filha de judeus portugueses e italianos, mas eu nem pensava em usar esse argumento com o meu sotaque e com minhas roupas de frio desconjuntadas, feitas pelas mãos mágicas da minha mãe, sem as etiquetas de marca que tanto fascínio parecia exercer naqueles rapazes e moças com os quais terminei meu Ensino Médio, sem constituir nenhuma amizade , confidência, namoro ou sequer um companheirismo mais duradouro.
Tornei-me professor já no primeiro ano da Universidade, movido pela necessidade de ganhar dinheiro e pela oportunidade que o capitalismo oferecia, ao contratar estudantes por salários aviltantes para dar aulas para adultos pobres do supletivo, que pagavam suas mensalidades com grande dificuldade em busca de um diploma para melhorar em seus empregos , garantindo com suas novas competências ainda mais lucros aos seus generosos patrões. Ali conheci uma Curitiba colorida, com as mesmas roupas em desalinho e com os mesmo tons de pele dos meus amigos de infância. Ali fiz minhas primeiras amizades, circulei por bairros cujos nomes desconhecia e fui a bares e festas onde muitos sotaques se misturavam, sem predominâncias nem julgamentos classificatórios.
Nessa época surgiu um movimento chamado “O Sul é o meu País”, que rapidamente ganhou muitos adeptos. Era comum ver nos vidros dos carros e mesmo nas janelas das casas e apartamentos o adesivo com a mensagem do movimento: “Sul livre, Sul rico”. Os argumentos eram variados mas , quase todos, desaguavam no mesmo ponto: o Sul sozinho, sem precisar carregar o resto do país nas costas, seria uma das nações mais ricas do planeta. O Sul tem identidade própria, população homogênea, tradições europeias, nível de escolaridade alto e grande capacidade para o trabalho, ao contrário de…bem, nessa hora eu sentia, mais uma vez, os olhares queimando minha pele e o medo de que apelido já esquecido pudesse voltar e me denunciar.
Não sei por qual injunção das circunstâncias fui convidado a participar de um programa da TV estadual, justamente para um debate sobre esse tema. Muito jovem ainda, tive de confrontar um militar aposentado, cheio de convicções sobre a superioridade do Sul em relação ao resto do país ( leia-se sempre, Nordeste). Não guardo muita memória desse episódio, mas recordo-me de dois argumentos que usei, inutilmente, para demover um pouco meu interlocutor de sua certeza messiânica: falei sobre a população multicolorida de nossa cidade, que era mais numerosa do que se imaginava, mas que as circunstâncias da própria organização da cidade invisibilizava; e falei, principalmente, sobre o desperdício de o Sul querer se livrar do resto do Brasil e do seu povo, por termos um patrimônio que é único no mundo. “E qual é?”, lembro-me dele perguntar, um tanto curioso com essa relação esdrúxula entre essas duas expressões: “povo” e “patrimônio”. A solidariedade, eu disse. Não há povo no mundo que seja mais capaz de se mobilizar com tanta presteza diante da dor dos outros como nós somos. E eu sabia bem do que eu falava, testemunha que fui, desde criança, das hordas de flagelados que invadiam a minha cidade e que causavam espanto e pena e, entre uma e outra coisa, provocavam uma onda de ajuda e acolhimento.
Não me lembro se ele concordou comigo ou se ignorou minha argumentação. O fato é que o movimento sobreviveu a estes anos todos. Nas últimas eleições, com a polarização política bem marcada entre um Nordeste para um lado e o Sul para outro, a irascibilidade e mesmo as agressões voltaram como um sonho mau. Um professor amigo meu, baiano, entrou em sala de aula e viu escrito no quadro verde: “volta pra tua terra!”. Gentil e adulto, ele apagou o quadro e deu mais uma de suas excelentes aulas, sabendo que é justamente a falta de Educação a razão de manifestações como essa.
E aí vieram as enchentes e estamos, todos, unidos e solidários com o povo gaúcho. Uma explosão de movimentos de arrecadação de colchões, roupas, água, alimentos, dinheiro, além de voluntários de toda a parte convergem para o Sul, porque o Sul não é o meu país, mas o Sul também é o meu país. E eu amo esse país e esse povo que, apesar de sofrido e muitas vezes castigado pela pretensão e pela arrogância, sabe que a palavra “ajudar” é nossa marca de identidade mais profunda e verdadeira.
*Daniel Medeiros é professor e consultor na área de humanidades, advogado e historiador, Mestre e Doutor em Educação Histórica pela UFPR.
E-mail: danielhortenciodemedeiros@gmail.com
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