A família, o grupo de amigos, os clubes de futebol, as turmas de formandos, entre tantos outros, buscam manter os liames de um passado comum nas histórias e nos personagens marcantes que compartilharam juntos – Imagem: Freepik
ARTIGO
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Por – Daniel Medeiros*, articulista de Neo Mondo
Na série Game of Thrones , o personagem sombrio denominado “rei da noite”, encarna um dos temores mais antigos da humanidade: o esquecimento de nossa passagem sobre a Terra. O objetivo do vilão da série é matar o “corvo de três olhos”, que, por sua vez, conserva a história de todos os reinos, de todos os personagens, em seus momentos de vileza e candura, amores e frustrações, propósitos mais dignos e momentos mais inconfessáveis. É a memória que guardamos de nosso estar nesse mundo que definimos como “vida”, “nossa vida”. O inimigo, portanto, é o que quer que esqueçamos disso, que tudo se apague, torne-se um borrão, como uma paisagem inóspita em meio a uma tormenta de inverno.
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Das doenças modernas que mais nos assustam , o Alzheimer é particularmente tocante. A perda de contato com os que nos rodeiam e a perda de referência sobre si mesmo tem a dimensão que o gregos davam ao ato de morrer: liquefazer-se. O rio Letes, um dos rios que levavam ao Hades, provocava exatamente esse efeito: o desaparecimento do indivíduo. Ainda hoje guardamos uma palavra que deriva dele: letargia, que é quando nosso corpo vai perdendo a sensibilidade de si mesmo, o contato consigo mesmo. Viver é manter esse contato. A morte é a perda da memória de nossa presença no aqui e no agora. Por isso muitos morrem antes de morrer. Esse é o maior perigo.
A ficção explorou o tema da morte muitas vezes, desde clássicos para adultos como O sétimo selo, de Ingmar Bergman aos clássicos para crianças como O Pequeno Príncipe. E em todos, uma mensagem se manifesta como o oposto da morte: a lembrança da nossa existência na memória dos outros. Ela é o refúgio da nossa resistência, a única chance de nossa permanência no mundo dos vivos. Por isso, na série da televisão, o “rei na noite” encarnava a maior ameaça de todas, pois ele era o único capaz de igualar todos os reinos a um único silêncio, todas as bandeiras a uma só mortalha, todos os reis e rainhas ambiciosos e narcisistas a uma única sombra, vagando sem sentido pelos campos gelados do inverno sem fim.
A memória é uma característica das comunidades, cuja existência depende desses marcos de reconhecimento. A família, o grupo de amigos, os clubes de futebol, as turmas de formandos, entre tantos outros, buscam manter os liames de um passado comum nas histórias e nos personagens marcantes que compartilharam juntos. As datas comemorativas servem para isso também. A visitação a lugares , sagrados ou profanos, tem esse mesmo condão. No entanto, a passagem recente da vida real para a vida digital, na qual cada vez mais pessoas vai habitando, levanta um sério questionamento sobre o efeito que pode causar nesses marcos necessários para a preservação da memória comum, condição de nossa manutenção no mundo por mais tempo. A efemeridade das relações digitais, a volatilidade das curtidas ou dos comentários aleatórios, a efervescência de viralizações que se esfumam com a mesma rapidez com que aparecem, a busca por um tipo de exposição que não deseja consolidar relações, mas angariar volume de likes, pode ser a expressão do fim de uma era, a da memória comum compartilhada .
Os negacionistas, os lacradores, os difamadores , os haters não param de crescer, arregimentando multidões para suas páginas onde devastam ideias, pessoas e carreiras, sem pudor ou cuidado, mas com a força de quem quer promover a desordem e o abatimento dos valores que até aqui balizaram nossa existência em um mundo no qual penamos para preencher de um sentido razoavelmente duradouro.
Assim como os “caminhantes brancos” da série consagrada, o passado em comum que ainda nos resta é o objetivo de destruição deles. Para que a noite prevaleça. Para que, sem mais memória e referência, eles, os mortos, possam dizer, sem ninguém mais para contestar: todos sempre foram como nós. Ninguém foi melhor nem mais brilhante. Todos foram insípidos e rasos como nós somos, como agora todos somos. E a horda urrará, os braços para o alto, sem saber a diferença entre a alegria da diferença e o desespero da eterna mesmice.
*Daniel Medeiros é professor e consultor na área de humanidades, advogado e historiador, Mestre e Doutor em Educação Histórica pela UFPR.
E-mail: [email protected]
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