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ARTIGO
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Por – Frineia Rezende, articulista e editora sênior de Neo Mondo
Nem só de pasto vivem os boizinhos e vaquinhas … Para garantir o churrasquinho, como falamos no texto anterior, o bichinho precisa se nutrir, né? Nesta sequência, exploraremos a alimentação do gado bovino.
Vários ingredientes compõem a dieta do gado bovino e divide-se em: Volumosos – composto por pastagens, silagens; conserva de forragens (de milho e sorgo por exemplo) e fenagem; forragem desidratada (como feno de capim), Concentrados Energéticos – milho (costuma ser a principal fonte de energia na ração), sorgo (alternativa ao milho), farelo de trigo (subproduto da moagem do trigo), Concentrados Proteicos – farelos de soja (o principal ingrediente proteico na ração), farelo de algodão (alternativa proteica) e ureia (fonte de nitrogênio não-proteico) e Suplementos Minerais e Vitaminas (principalmente A, D e E). Ufa!
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Como já falamos um pouquinho sobre alguns problemas sobre pastagem no Brasil no texto anterior, focaremos numa das maiores commodities produzidas no Brasil.
É verdade que a soja é uma das maiores culturas da agroindústria brasileira e acaba tento um importante papel na economia nacional e entre as commodities globais. Então, bóra mergulhar um pouquinho nesse campo cheio de soja.
A Glycine ussuriensis tem origem no extremo oriente (China e Japão) e Indochina (atuais Camboja, Laos e Vietnã) e alguns autores citam também a Coréia o extremo oriente da Rússia – tendo sido domesticada no Sec. XI a.C.
A partir da seleção da “melhor” variedade pelo ser-humano, expandiu-se o uso e cultivo da Glycine max, ou da soja como a conhecemos hoje. E foi só no sec. XX que o Brasil passou a cultivá-la.
A semente da soja é rica em proteínas e óleo – não à toa a culinária usa o óleo de soja amplamente. Em algumas variedades melhoradas, a semente chega a apresentar de 40 a 42% de proteína e de 20 a 22% de óleo. Segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), existem 2000 cultivares de soja no Brasil e 3000 no mundo. E a soja transgênica* representa 96% de toda a produção brasileira.
Para se ter uma ideia da importância da soja para o Brasil, em 2022, produziu-se por aqui 125 milhões de toneladas – o que levou o Brasil a se consolidar como o maior produtor do globo, em 2023; 150 milhões e em 2024; 162,4 milhões. Mato Grosso, Paraná e Goiás somados produziram nesse período cerca de 60% da soja aqui pelas terras da Pindorama.
No geral, a soja brasileira processada resulta em farelo (77%), óleo (20%) e casca (3%). Em 2023, o Brasil processou 46 milhões de toneladas de soja, dos quais 36 milhões viraram farelo. 48% desses 36 foram exportados e os outros 52% viraram parte da ração de aves, suínos e, claro, bovinos para o mercado brasileiro mesmo.
Mesmo exportando proporcionalmente menos que o volume consumido internamente, a receita da exportação só do farelo foi de US $12 bi! Mas, os preços médios por tonelada vêm caindo nos últimos anos e a tendência não parece melhorar num futuro próximo.
Ainda assim, o Brasil exporta seus grãos de soja em proporção maior do que consome e por isso tem importantes parceiros comerciais. E para entender por que a China é tão importante como parceiro do Brasil, só em 2021, a China comprou quase 70% da soja em grãos brasileira. Em segundo lugar, a Espanha, com 4% e em terceiro a Turquia; com 3,4%. Já em 2023, a China levou 75% da produção brasileira, enquanto Tailândia e Espanha levaram 3% cada.
– Eita! Péra. A soja tem origem para as bandas da China. O Brasil é o maior produtor e a China o maior comprador da soja brasileira. Buguei. Como é que Brasil chegou nesse cenário, se tornando o maior player no mercado da soja?
Certamente, institutos de pesquisa, instituições como Embrapa e o investimento da própria agroindústria (detentoras de patentes de variedades modificadas) levaram à clara superioridade da soja brasileira, em comparação com a própria produção asiática. Por exemplo, enquanto a produtividade média brasileira se dá em torno de 3.500 kg/ha, a global é de cerca de 2.800.
– Ah, entendi! Nossa soja é melhor por conta do melhoramento genético.
Hummm, mais ou menos. Os teores mais altos de óleo e proteína do grão brasileiro são resultado de uma combinação de fatores que incluem ambientais e manejo agrícola – e não somente do melhoramento das sementes!
Portanto, precisamos fazer uma consideração importante: pense aqui comigo, se a soja tem origem asiática, porque a própria China, com aquela extensão enorme, não se torna a maior produtora de soja e fortalece o mercado interno deles, diminuindo a exportação e evitando as flutuações de preços dessa comodity no mercado interno chinês?
– Provavelmente eles não desenvolveram a mesma tecnologia que nós… (?)
Bom, mas eles têm tecnologia para chegar em resultados, talvez, até melhores que os nossos, já que o investimento em P&D deles é enorme. Veja só, comparando os dois países: a produção do Brasil foi de 150 milhões toneladas e da China, 19, 7 milhões!!! O Brasil utilizou 45,98 milhões de hectares e a China, apenas 9,95 milhões de ha. Só para lembrar que o território brasileiro possui 851,6 milhões de ha e a China, 959,7 milhões.
Para entendermos essa treta toda, vamos mergulhar ainda mais nos campos de soja, no Brasil e além.
Quase não se ouve mais falar da Moratória da Soja, criada em 2006, considerada um dos melhores mecanismos já criado no Brasil, para evitar o avanço de atividades ilegais da agropecuária. Apesar de voluntário, a grande maioria das traders globais de soja aderiram a essa moratória. Essas traders, por tanto, se comprometeram a não comprar soja de produtores ligados à conversão de floresta em lavouras de soja na Amazônia Legal.
Porém, entre 2008 até 2012, um estudo avaliou 10 anos de dados sobre a conversão de áreas para plantio de soja na Amazônia Legal, constatando-se um acréscimo significativo de irregularidades; só na safra 2021/2022 identificou-se 192.753 ha (quase a área do Senegal) de plantio de soja em desacordo com a Moratória. E apenas entre setembro e dezembro de 2023, o monitoramento da Migthty Earth identificou o desmatamento de 60.000 ha (basicamente o tamanho do município de Areal, RJ) em áreas dos biomas Amazônia e Cerrado.
Mas aqui entra um dado interessante e preocupante: o mesmo estudo aponta um aumento de área plantada, mas uma redução de 9,9% na produção…. aí começamos a identificar outra treta. Nesta safra, eventos climáticos extremos causaram quase 50% de perdas na produção, na região sul. Enquanto isso, no Norte e no Centro-oeste o clima foi favorável.
Não preciso discorrer sobre os problemas socioeconômicos que esse cenário causou no Sul, né? Imagine, então, em maio de 2024! A projeção era de 22,246 milhões de toneladas de soja produzidas, mas por conta das tempestades e enchentes foi de 19,532 milhões. Lembre-se, estamos falando de milhões, não de mil. Obviamente, não foi só a soja que sofreu com esses eventos climáticos extremos.
Outro dado importante: lembra-se que foi no ano de 2022/2023 que o Brasil se consolidou como o maior exportador global de soja e aumentou sua taxa de exportação? Pois é… um dos motivos deveu-se a eventos climáticos extremos na Argentina – terceiro maior produtor de soja do mundo, que teve uma queda de 51,5% em sua produção naquele período. Os hermanitos viram a produção despencar para apenas 21 milhões de toneladas, e perderam uma fatia importante do mercado.
Chuvas no Hemisfério Sul, seca no Hemisfério Norte. Em 2023, os Estados Unidos – segundo maior produtor de soja do mundo, sofreu com secas severas e a safra 23/24 foi de 121,4 milhões de toneladas. Para 24/25, os EUA terão que aumentar a área plantada em 35 milhões de ha para chegar em 121,11 milhões de toneladas. de soja. Algo de errado não parece certo com esses números, não?
Estamos, portanto, assistindo a um aumento de “necessidade” de área plantada para ter a mesma escala produtiva, não só no Brasil, mas entre os concorrentes diretos do Brasil também. Mas, essa necessidade não se deve apenas aos efeitos de eventos climáticos extremos; deve-se, também, ao uso de técnicas que empobrecem o solo e podem provocar danos quase irreparáveis, como a erosão drástica, em função do cultivo intensivo – vê-se aqui a relação direta com a conversão de floresta em área para plantio.
É verdade que os vegetais sequestram carbono, mas nem por isso as culturas agrícolas têm saldo positivo. As emissões de GEE estão pelos campos de soja também. E esses GEE não estão associados somente ao desmatamento em si, ou a incêndios criminosos, mas às práticas agrícolas, transporte; tanto de sementes para o plantio e logística de distribuição no mercado interno quanto para a exportação de grãos e derivados.
Bases de dados internacionais dão conta de que a pegada média de carbono da soja brasileira é de 2600 kg CO2 eq/t. Considerando esse número e que a China importou 75,97 milhões de toneladas do Brasil, seriam necessários 39.504.400 ha (395.504 km2) de floresta para compensar essas emissões! A Noruega tem em extensão 385,207 km2 … !
– Tá, mas você ainda não me respondeu por que a China não cobre tudo lá de soja se é o maior comprador do mundo, tá cheio de espaço e mão-de-obra.
O Brasil é um dos países com maior riqueza em serviços ecossistêmicos**. A China, e muitos outros países, está longe de ter a (ainda) rica disponibilidade hídrica distribuída em todo o território, como o Brasil, e nem possui a maior biodiversidade do planeta. Porém, a China está em sétimo lugar em termos de riqueza de nutrientes no solo, o Brasil está em quinto lugar.
A China é o maior produtor de arroz e de trigo do planeta! Lembre-se que quem inventou o macarrão não foi a Itália, mas a China. Por tanto, esse que é um dos maiores países do mundo, fez uma escolha clara: investir em culturas agrícolas que alimentem as pessoas – ou seja, diferente do Brasil, focou na segurança alimentar da população.
A soja exige muito mais espaço do que o arroz ou o feijão, além de solo de alta qualidade, para ser minimamente rentável. O Brasil, a cada ano que passa, oferece mais e mais subsídios para o plantio de soja. Os estados produtores desoneram os produtores de soja em cerca de R$ 25 bi por ano. Em termos de ICMS, apenas o Estado do Mato Grosso desonera os produtores de soja em R$ 8 bi/ano. A renúncia fiscal para a soja, em 2022, foi de R$ 57 bi, enquanto para os produtos dos alimentos da cesta básica, R$ 30 bi.
Ou seja, a soja é uma das culturas agrícolas que mais apresenta problemas ambientais (empobrecimento do solo, perda da biodiversidade e mudanças climáticas para dizer o básico), não é essencial para a dieta alimentar diária e não nos protege de um cenário de insegurança alimentar… mas é a que mais recebe subsídios. O Brasil não exporta soja, mas água e solo.
A receita do churrasquinho ainda não acabou, não. Ainda tem arroz, farofa e, claro, a cervejinha. Aguardem!
* Os artigos científicos que discutem pesquisas a esse respeito não evidenciam impactos negativos à saúde humana pelo consumo da soja transgênica.
** serviços prestados pela natureza, em função da riqueza de ecossistemas, que garantem filtragem da água (pelo solo, por exemplo), disponibilidade hídrica, conforto térmico (florestas, rios etc), polinização e muitos outros serviços.
Frineia Rezende – bióloga, mestre em ecologia e recursos naturais, é especialista reconhecida em conservação da natureza e desenvolvimento sustentável, com vasta experiência na promoção de práticas de proteção aos ecossistemas marinhos e florestais. Com uma sólida carreira internacional, Frineia tem liderado programas estratégicos que integram comunidades locais e governamentais, bem como organizações privadas e não-governamentais, para a proteção e manejo de recursos naturais. Seu trabalho se destaca pelo compromisso com a proteção da biodiversidade e combate às mudanças climáticas e seus impactos sobre pessoas e ecossistemas, além da habilidade em promover parcerias colaborativas em prol de, não só um futuro, mas essencialmente, um presente sustentável. Frineia, além de executiva da área da conservação, é Advisor da Bio Bureau Biotecoologia e articulista e editora sênior de biodiversidade do portal Neo Mondo.