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POR – ANA CHAGAS
A invisibilidade da água no debate climático
Enquanto o mundo mobiliza bilhões para enfrentar as mudanças climáticas, fala-se cada vez mais em transição energética, descarbonização, proteção da biodiversidade e créditos de carbono. Mas há um recurso fundamental para todas essas agendas que segue perigosamente invisibilizado: a água.
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Apesar de sua importância vital — para a vida, a produção de alimentos, a indústria, a inovação tecnológica e a geração de energia — a escassez hídrica ainda é tratada como um tema secundário. No Brasil, os conflitos relacionados ao uso da água cresceram 481% nas últimas duas décadas, impulsionados por disputas entre setores produtivos, comunidades e ecossistemas.
Esse cenário se agrava à medida que avançamos em projetos globais de transição energética e digitalização sem considerar o custo hídrico dessas transformações. Um exemplo é a produção do chamado hidrogênio verde: para quebrar a molécula de água e extrair o hidrogênio, não pode ser qualquer água — é preciso água de altíssima pureza. Como exportar hidrogênio a partir de água doce em um país onde o acesso à água já é desigual e disputado?
Outro exemplo é a corrida pela instalação de data centers no Brasil, impulsionada pela expansão da inteligência artificial. Esses empreendimentos são grandes consumidores não apenas de energia, mas também de água, usada para resfriamento de servidores. Estima-se que um único data center possa consumir até 20 milhões de litros de água por dia — o equivalente ao abastecimento de uma cidade de médio porte.
A busca por soluções tecnológicas mais “verdes” chega ao ponto de propostas como data centers submersos no oceano — como o recém-instalado pela China perto da ilha de Hainan. Se por um lado essa solução reduz o uso de água doce, por outro, impõe novos riscos: o aquecimento localizado das águas marinhas pode ter efeitos sinérgicos com o aquecimento global e impactar a vida marinha em escala ainda desconhecida.
Importante destacar que não se trata aqui de rejeitar soluções como o hidrogênio verde e a digitalização — todas têm seu papel e seu potencial estratégico para o Brasil. Mas é justamente por serem tão relevantes que precisamos discuti-las com mais profundidade, responsabilidade e transparência. O que está em jogo não é o “sim ou não”, mas o “como, para quem e sob quais condições”. Trata-se de uma conversa sobre governança, e não de oposição ideológica.
Hidrogênio verde: uma promessa energética baseada em um recurso finito
O hidrogênio verde é apresentado como uma das principais soluções para a transição energética global. Sua promessa é sedutora: um combustível com emissão zero, capaz de descarbonizar setores de difícil abatimento, como siderurgia, aviação e transporte marítimo. Mas essa promessa esconde uma condição muitas vezes ignorada — a dependência da água.
A produção de hidrogênio verde via eletrólise da água exige não apenas grandes volumes, mas água de altíssima pureza. Impurezas podem comprometer o desempenho dos eletrolisadores, causar depósitos nos eletrodos e danificar membranas, reduzindo a eficiência do processo. Por isso, é necessário o uso de água desmineralizada, com níveis de condutividade inferiores a 5 µS/cm — padrão semelhante à água de Tipo I ou II, conforme classificação da ASTM.
Além disso, o volume de água necessário não é desprezível: para cada quilo de hidrogênio produzido, consome-se entre 9 e 22,4 litros de água, dependendo da tecnologia empregada. A depender da fonte, pode ser necessário recorrer à dessalinização ou pré-tratamentos complexos, elevando os custos e o consumo energético total da cadeia.
Diante disso, é preciso reconhecer: a expansão do hidrogênio verde, especialmente com foco em exportação, pode se chocar com a realidade dos territórios. A água, cada vez mais escassa e disputada, corre o risco de ser alocada para atender a demandas externas — deslocando outras prioridades e agravando desigualdades locais.
Inteligência artificial, data centers e o novo dilema hídrico
A inteligência artificial vem sendo apontada como motor da próxima revolução tecnológica — e, com ela, cresce exponencialmente a demanda por infraestrutura digital. Os data centers, responsáveis por processar e armazenar volumes colossais de dados, estão no centro desse avanço. Mas há um custo invisível nesse progresso: o consumo intensivo de energia e, sobretudo, de água.
Para manter os equipamentos em funcionamento contínuo e evitar o superaquecimento, os data centers utilizam milhões de litros de água diariamente em sistemas de resfriamento. Estima-se que um único data center possa consumir entre 11 e 20 milhões de litros de água por dia. Em 2022, o Google reportou um aumento de 22% no seu consumo global de água, impulsionado justamente pela expansão de seus centros de dados.
O Brasil, com sua matriz energética limpa e relativa abundância hídrica, passou a ser visto como um destino estratégico para novos investimentos no setor. Atualmente, há 46 novos data centers planejados ou em construção no país, o que evidencia o apetite por ocupar nosso território com infraestrutura de alto consumo.
A tendência se internacionaliza com propostas ainda mais ousadas, como os data centers submersos. Se por um lado essa solução reduz o uso de água doce, por outro, impõe riscos ao ambiente marinho: o despejo contínuo de calor nos oceanos pode intensificar o aquecimento das águas e impactar a biodiversidade.
E um paradoxo se impõe: os data centers consomem quantidades colossais de energia e de água — e no Brasil, nossa principal fonte de energia é justamente a água. Estamos usando água para gerar energia que abastece estruturas que também consomem água. Essa conta não fecha, especialmente em tempos de escassez e de eventos climáticos extremos.
O novo neocolonialismo já está em curso
Muito se fala sobre o risco de o Brasil repetir seu papel histórico de fornecedor de recursos primários no contexto da transição ecológica e digital. Mas talvez seja hora de abandonar o eufemismo: esse modelo já está em pleno funcionamento.
Hoje, seguimos exportando não apenas commodities agrícolas, mas também nossos recursos naturais mais estratégicos: água, energia, biodiversidade, terras raras, lítio, nióbio. Elementos essenciais para a descarbonização da economia global, para a eletrificação da mobilidade e para o avanço da inteligência artificial.
Esses recursos saem do país sem a devida agregação de valor, sem governança robusta, sem garantias reais de benefício compartilhado — e frequentemente com impactos ambientais e sociais que ficam por aqui. A conta fica no território, mas o lucro se concentra fora dele.
Esse novo ciclo de exploração é promovido sob o discurso da sustentabilidade e da inovação. Mas quando olhamos com atenção, vemos que se trata de uma reedição do velho extrativismo colonial, agora em nome de uma economia verde e digital. Um modelo que precisa ser urgentemente confrontado — e substituído por uma estratégia de soberania que coloque o Brasil no centro das decisões sobre o uso de seus próprios recursos.
Sem água, não há futuro — para o clima, para a tecnologia, nem para a soberania
Água não é apenas um recurso natural — é infraestrutura crítica para o desenvolvimento, a estabilidade social, a transição energética e a inovação tecnológica. Sem ela, não há hidrogênio verde, não há agricultura, não há indústria, não há data center — e não há vida.
No entanto, seguimos tratando a água como elemento acessório nos grandes debates sobre o futuro. Ignoramos seu papel na matriz energética, subestimamos os conflitos já em curso no Brasil, e permitimos que ela seja alocada em projetos que beneficiam muito mais interesses externos do que a população brasileira.
É hora de mudar essa lógica. A água precisa ser reconhecida como recurso estratégico de soberania nacional. Precisamos estabelecer critérios claros para o uso da água em projetos que demandam grandes volumes — com transparência, participação social e condições de benefício mútuo.
Tampouco se trata de opor desenvolvimento e proteção. As soluções tecnológicas e produtivas são bem-vindas e necessárias. Mas precisam estar inseridas em uma estratégia nacional que priorize o interesse coletivo, respeite os limites ambientais e assegure às futuras gerações o acesso a um recurso essencial.
Se o Brasil quiser liderar a agenda climática global, precisa começar por garantir que sua própria transição seja justa, soberana e baseada em decisões informadas. Isso significa valorizar a água — não como commodity de exportação silenciosa, mas como fundamento de um futuro verdadeiramente sustentável.
Advogada com mais de 20 anos de atuação na área de sustentabilidade. É mestre em Direito Ambiental pela Université Paris 1 – Panthéon Sorbonne e sócia-líder da área Ambiental, ESG e Mudanças Climáticas do Simões Pires Advogados. Membro ativo da Rede LaClima (Latin American Climate Lawyers Initiative for Mobilizing Action), atuando como mentora do GT Corporativo e Clima, e como Conselheira Fiscal.