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ARTIGO
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Por – Hans Poll*, especial para Neo Mondo
O Brasil é, historicamente, um país privilegiado em termos de matriz energética. Com abundância de água, sol e vento, nunca precisou realmente depender de combustíveis fósseis ou de qualquer forma de geração baseada na queima de materiais para garantir o fornecimento de eletricidade.
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Claro, a primeira situação que vem à mente é que vento e sol são intermitentes, e há períodos de escassez de água — o que cria outras necessidades. Mas nem sempre foi assim, e não precisa continuar sendo, se atacarmos a raiz da questão. Ou seja, daí para entrar na contramão da transição energética global e promover leilões de energia que estimulam a expansão de térmicas movidas a etanol, biodiesel e gás — ainda em um ano de COP30 — é um tema que exige reflexão.
A chamada transição energética global tem como foco a substituição dos combustíveis fósseis por fontes renováveis e de baixo carbono. Mas, ao contrário de países que precisam recorrer à queima de carvão, petróleo ou gás por limitações naturais, o Brasil sempre contou com recursos genuinamente limpos — uma matriz energética que foi, e ainda é, o objetivo de muitas nações. Ou seja, o Brasil está onde outros gostariam de estar em termos de geração energética e precisa, sim, focar na transformação de sua frota móvel para que seja elétrica ou, no mínimo, híbrida.
Enquanto a China, por exemplo, investe para sair da dependência da combustão, instalando hidrelétricas e baterias de água — as chamadas usinas hidrelétricas reversíveis — o Brasil parece insistir em um caminho inverso. A prioridade para o aumento da potência disponível no Brasil deveria passar pelo aumento da capacidade nas usinas hidrelétricas, e não pelo crescimento da capacidade térmica, que, ao final, queima combustível, eleva os custos para o consumidor e intensifica as emissões inexoravelmente. Claro, o argumento de que “precisamos de alternativas para garantir energia em tempos de seca” escancara a falha estrutural do modelo adotado nas últimas décadas: a construção excessiva de usinas a fio d’água, sem reservatórios de acumulação suficientes, que permitam a regulação da água tanto em tempos de cheia quanto de seca.
Na década de 1980, a relação entre o volume de água armazenado e a potência instalada era muito mais favorável. Com isso, mesmo em períodos de estiagem, o sistema mantinha estabilidade para atender à demanda relativa. Hoje, essa equação mudou. Optou-se por restringir os reservatórios e, com isso, deixamos de lado a lógica mais básica de regulação: guardar água em tempos de abundância para usar em tempos de escassez. A relação entre armazenamento de água e potência instalada caiu quase pela metade.
Estocar energia potencial em forma de água é uma solução óbvia. As usinas reversíveis, que podem bombear e turbinar água, foram concebidas justamente com o objetivo de gerar energia em tempos de alta demanda e armazenar energia quando há excesso de produção — evitando-se o que é conhecido no setor como curtailment.
A mesma lógica vale para a regularização do fornecimento de água para consumo. Toda casa brasileira tem uma caixa d’água porque sabemos que, em algum momento, há a probabilidade de o fornecimento ser interrompido por alguma escassez. Não há caixas d’água em muitos países desenvolvidos porque o sistema central é eficiente o suficiente para dispensar esse tipo de precaução. Mas aqui, com infraestrutura ainda desigual, as medidas preventivas são individuais — e indispensáveis. Ou seja, a regulação do fornecimento de água, para se evitar amplitudes entre cheias e secas, passa por revisitar o modelo de uso de reservatórios integrados à geologia nacional — principalmente agora, em tempos de maiores variações, em virtude dos efeitos das mudanças climáticas globais.
As grandes hidrelétricas com reservatórios são, comprovadamente, menos afetadas pelas variações climáticas. Elas não apenas garantem a geração de energia de forma contínua e diversos outros serviços elétricos, como também asseguram o abastecimento humano, o uso agrícola, o controle de enchentes, a navegação, o turismo e o desenvolvimento regional. O Brasil tem vocação para ser uma inspiração mundial — e não um paradoxo. A estabilização da rede elétrica em um sistema integrado passa por ter em operação máquinas que garantam reserva de inércia e flexibilidade operacional rápida para compensar oscilações elétricas na rede e na demanda — e são as usinas hidrelétricas que garantem essa condição. Nenhuma outra fonte faz isso com tal eficácia. Uma matriz energética com despacho predominante de fontes solares e eólicas é instável. Baterias químicas e termoelétricas são fontes poluidoras e não trazem flexibilidade e robustez à matriz.
A Europa recentemente sofreu um apagão justamente por não ter geração hidrelétrica suficiente ativa para controlar as oscilações de sua rede. Não há abundância de recursos hídricos nem usinas reversíveis suficientes. E, como há muita dependência de fontes renováveis, como solar e eólica, o sistema não é robusto — e tais apagões representam um dos riscos para muitas nações europeias. O problema é complexo, pois não há mais recursos hídricos a serem explorados — situação diferente da brasileira. Entretanto, paradoxalmente, travamos nossa expansão em potência elétrica por não conseguir equacionar a competição entre os combustíveis de queima, usados em máquinas térmicas — ignorando o fato de que, prioritariamente, não precisamos de nenhum desses combustíveis. Poderíamos simplesmente continuar a expansão da potência usando opções nas hidrelétricas existentes e em novas usinas reversíveis multifuncionais.
A pergunta que fica é: queremos, de fato, uma matriz energética limpa e sustentável? Ou vamos seguir desperdiçando nossos recursos naturais e encarecendo nossa energia, enquanto países que invejam nossa condição geográfica avançam justamente nas soluções que nós já dominamos?
Fica o convite à reflexão profunda: será que um país com vocação de protagonista ainda não percebeu seu papel e, de alguma forma, insiste em não dar continuidade a uma política de longo prazo baseada em recursos naturais sustentáveis e renováveis próprios?
Hans Poll é CEO da Voith Hydro América Latina.