Eunice Durham era antropóloga e cientista social – Foto: Cecília Bastos/USP
Por – Marcello Rollemberg, para o Jornal da USP / Neo Mondo
A professora Eunice Durham, que morreu no último dia 19, soube como poucos unir teoria e prática em defesa da educação no Brasil
Trata-se de uma obviedade mas, nesses últimos anos de estranhezas e estranhamentos, é sempre importante repetir: uma nação cresce e se estrutura baseada, antes de mais nada, na Educação – assim mesmo, com maiúscula. Mas a Educação tem sido atacada sistematicamente, desvalorizada, relativizada ao ponto da esqualidez por parte de órgãos e atores sociais e políticos que deveriam justamente fazer o contrário. Essa é uma realidade. Mas há outra, aquela em que pessoas levantam a voz e estruturam ideias para defender bandeira educacional no Brasil. Isso, mesmo contra o vozerio aturdido que teima em apontar o dedo inquisidor e virulento contra instituições de ensino, principalmente universidades públicas. Uma das vozes mais importantes e respeitadas na defesa da Educação como formadora de cidadãos com habilidades múltiplas e de uma nação pensante era a da antropóloga e educadora Eunice Ribeiro Durham, que morreu aos 90 anos no último dia 19. Uma das principais marcas em sua trajetória de décadas em prol da Educação era a defesa ferrenha pela democratização do acesso ao ensino superior.
“A morte da professora Eunice Durham traz uma dor enorme, sobretudo em tempos em que o saber e o conhecimento sofrem ataques tão violentos em nosso País”, afirmou, em nota oficial, o reitor da USP Carlos Gilberto Carlotti Junior. “Ela soube defender a ciência e o ensino com elegância e vigor e foi um dos nomes mais importantes da Universidade, na pesquisa antropológica e na gestão do ensino superior, assumindo importantes responsabilidades à frente do MEC e do Conselho Estadual de Educação”, afirma Carlotti. A Reitoria da USP decretou luto oficial por três dias em homenagem à professora Eunice.
Eunice Durham construiu toda sua longa carreira acadêmica na Universidade de São Paulo – era antropóloga, cientista política e Professora Emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, título recebido há duas décadas. Foi na FFLCH que ela defendeu sua dissertação de mestrado sobre imigração italiana – orientada por Egon Schaden –, experiência que a levaria, no começo dos anos 1970, a ser orientadora de doutorado da futura primeira-dama Ruth Cardoso, cuja tese estudava a imigração japonesa. Já seu doutorado, também sob orientação de Schaden, deu atenção à migração rural urbana. A livre-docência, por fim, foi sobre o antropólogo polonês Bronislaw Malinowski, autor por quem se apaixonou lendo, ainda jovem, um livro na biblioteca do pai.
Foi no início desse percurso acadêmico, entre os anos 1950 e 1960, que Eunice estreitou sua relação intelectual e de amizade com o também antropólogo e criador da UnB Darcy Ribeiro. “O Darcy Ribeiro montou uma enorme pesquisa sobre urbanização e as transformações da sociedade brasileira contemporânea e me convidou a participar. Achei uma falta de responsabilidade do Darcy porque eu era recém-formada. O mestrado nem estava escrito ainda. Mas ele era uma pessoa interessante e sedutora. Me dizia: ‘Pode deixar. Eu oriento você’. Jamais fui orientada. Ele me deu a parte da migração rural-urbana, que se tornaria minha tese de doutorado”, relembrou a professora à Revista Pesquisa Fapesp há sete anos (leia a íntegra da entrevista aqui).
Ela também foi pesquisadora e membro do Conselho do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas (NUPPs) da USP desde 2005 e por muitos anos dirigiu e inspirou a vida intelectual e acadêmica do núcleo. Antes, ela ajudou a criar o Nupes – Núcleo de Pesquisa de Ensino Superior da USP, que coordenou de 1989 a 2005. “O Nupes foi uma nova forma de fazer pesquisa sobre ensino superior, uma pesquisa menos ideológica e mais baseada no levantamento e análise de fatos e informações levando em consideração o que ocorria no resto do mundo”, contou ela à Revista Pesquisa Fapesp. “Acho que o Nupes fez um bom trabalho. A direção do Simon Schwartzman foi essencial. Deixamos de falar em universidade para falar de sistema de ensino superior”.
Foi essa postura de pensar a universidade e o ensino superior para além de parâmetros preestabelecidos ou fórmulas intocáveis, que fez Eunice ser tão respeitada. Logo após a notícia de sua morte, o NUPPs reconheceu justamente essa postura da professora. “A professora Eunice foi uma voz poderosa em defesa da ciência e da pesquisa. Além de sua contribuição intelectual à antropologia brasileira, o NUPPs lembra em especial seu legado para a área que explora as mudanças por que passa o ensino superior à medida que responde às novas demandas da sociedade do conhecimento”, registrou o núcleo em nota de pesar. “Sua produção intelectual nessa área é ainda mais atual quando consideramos os enormes desafios por que passa a educação no Brasil nos dias de hoje.”
Teoria e prática em prol do ensino superior
Eunice Durham foi uma pesquisadora prestigiada e uma professora extremamente respeitada – e a sala de aula era seu habitat natural, apesar de a pesquisa ter lhe dado maior reconhecimento intelectual, como ela mesmo afirmou. Esse prazer de ensinar levou-a a declarar, ao receber o título de Professora Emérita, que “a docência foi sempre minha verdadeira vocação: a tarefa de formar estudantes – não apenas a de lhes ensinar antropologia, mas a de procurar fazer com que a utilizassem para alargar sua visão de mundo, para assumir uma perspectiva crítica em relação à sociedade e a si mesmos”.
Tenho muitas lembranças da professora, da qual fui aluna, admiradora, usufruindo da sua convivência, vendo-a como um modelo de mulher acadêmica, que defende posições, mas que se abria ao debate e ouvia as novas gerações. Era elegante, visível no apuro e sobriedade dos seus trajes muito bem compostos; era mãe de Alan, hoje professor do Instituto de Matemática e Estatística – IME –; interessava-se por nós, alunas, e com a nossa condição de mães”, recordou em artigo para o Jornal da USP a professora Maria Arminda do Nascimento Arruda, ex-diretora da FFLCH e vice-reitora da USP. “Eunice era uma mulher pioneira e multifacetada, haja vista a trajetória inusual para a sua geração. Nesse sentido, tornou-se referência para outras mulheres na academia, seja como pesquisadora e intelectual de alto nível, seja na seara das políticas científicas e dos assuntos públicos, seja ainda no pioneirismo feminino em um ambiente adverso. Jamais se deteve diante da necessidade de denunciar iniquidades, violação de direitos e ataques à democracia”, afirma a vice-reitora (leia a íntegra do artigo aqui).
Mas, para além da sala de aula, a professora Eunice Durham soube, como poucos, unir a teoria e a prática em prol do ensino superior e mais – em prol da própria Universidade e de suas estruturas política e acadêmica, muitas vezes questionando-as, o que lhe rendeu algumas resistências na própria academia. “Eunice tinha posições firmes e não poucas vezes polêmicas em relação às políticas de pós-graduação, de educação superior e de ciência no Brasil”, afirma nota de pesar da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), da qual Eunice Durham foi vice-presidente entre 1989 e 1991.
Já entre 1967 e 1968 ela, que nunca se considerou marxista – “o marxismo não serve muito para a antropologia”, declarou certa vez –, alertava seus alunos sobre os riscos da radicalização. “Antes de ir para a ciência política, eu já havia começado a me interessar pela questão da política estudantil e universitária. Toda a luta dos estudantes e professores menos tradicionalistas girava em função da necessidade de reformar a universidade. Apoiei os estudantes, mas achava que eles estavam indo por um caminho em que não ia haver vitória nenhuma, que era o de fazer a revolução socialista. O movimento ia acabar, como acabou, destruído porque os estudantes não tinham apoio popular nem apoio político para fazer a revolução”, afirmou ela à Revista Pesquisa Fapesp.
Para longe da revolução apregoada pelos estudantes, Eunice acabou enveredando, a partir dos anos 1980, por um caminho que alicerçou muitas de suas ideias sobre o ensino superior. Na USP, ela atuou para a institucionalização do trabalho de extensão universitária na Comissão Especial da Coordenadoria Executiva de Cooperação Universitária e de Atividades Especiais (Cecae) da Reitoria, entre 1988 e 1989, no mesmo período em que passava a atuar também como assessora especial da Reitoria para Políticas Universitárias, entre 1987 e 1989. Além disso, foi presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e ocupou as secretarias nacionais do Ensino Superior em 1991 e 1992 e de Educação Superior, de 1995 a 1997, no Ministério da Educação. Também fez parte do Conselho Nacional de Educação de 1997 a 2001. “[No MEC] Adquiri uma visão de todo o sistema que eu não tinha da perspectiva das ciências sociais. Tive muito contato com os cientistas, os médicos, os engenheiros. Talvez o melhor trabalho que eu tenha feito na vida foi dirigir a Capes”, revelou ela à Revista Pesquisa Fapesp.
“Eunice Durham era uma intelectual na acepção da palavra. Pensava o Brasil e traduzia para a opinião pública os alicerces desse seu pensamento. Do ponto de vista da educação, que é o campo em que eu a conheço melhor, estruturou, no tempo que esteve à frente da Capes, uma política de ensino superior”, afirma a professora Carlota Boto, diretora da Faculdade de Educação da USP (FE-USP). “Tinha inegavelmente uma inequívoca coerência entre seu pensamento teórico e suas estratégias como figura pública e atuante no debate pedagógico sobre ensino superior. Foi uma personalidade marcante e defendeu sempre de maneira apaixonada as ideias em que acreditava.”
A vice-reitora Maria Arminda do Nascimento Arruda reitera essa visão: “Eunice conciliou à docência, a pesquisa inovadora, a ação institucional e pública. Em todos os campos de atuação primou-se pela excelência e pelo caráter marcante, típico de personalidades que jamais nos esqueceremos, manifesto na defesa firme das suas ideias”.
Depoimentos de vida e de academia
Veja nos três vídeos abaixo entrevistas da professora Eunice Durham sobre sua vida e sobre sua trajetória acadêmica. No vídeo sobre 1968, ela pontua depoimentos de colegas da USP que vivenciaram os anos de chumbo – Fernando Henrique Cardoso, Dalmo de Abreu Dallari, Jean-Claude Bernardet e Carlos Guilherme Motta.