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POR – OSCAR LOPES, PUBLISHER DE NEO MONDO
Por que um projeto crucial para a governança oceânica brasileira tramita há mais de uma década na Câmara dos Deputados? Alexander Turra analisa os desafios políticos e estruturais que retardam sua aprovação
O Brasil, com seus quase 8 mil quilômetros de costa e uma das maiores zonas econômicas exclusivas do mundo, ainda não possui uma política nacional robusta para a gestão integrada e sustentável de seus ecossistemas marinhos e costeiros. Enquanto os impactos das mudanças climáticas se tornam cada vez mais evidentes—com a elevação do nível do mar, a acidificação dos oceanos e a destruição acelerada de recifes de corais e manguezais—, a governança desses territórios segue fragmentada, refém de interesses setoriais e da inércia política.
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Após mais de uma década de tramitação, o Projeto de Lei 6969/13, conhecido como Lei do Mar, finalmente entra na agenda de votações da Câmara dos Deputados. A proposta promete criar diretrizes para a conservação e o uso sustentável do sistema costeiro-marinho brasileiro, um território vital não apenas para a biodiversidade, mas também para milhões de brasileiros que dependem diretamente do oceano para sua subsistência e cultura. No entanto, sua aprovação enfrenta desafios significativos: a resistência de setores econômicos, a falta de prioridade política e a possibilidade de que seu conteúdo seja desidratado para atender a pressões corporativas.
Para compreender as dimensões dessa legislação e o que está realmente em jogo, entrevistamos um dos maiores especialistas em oceanos do Brasil: Alexander Turra. Biólogo, educador, pesquisador e comunicador, Turra é professor titular do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo e coordenador da Cátedra Unesco para a Sustentabilidade do Oceano. Com uma trajetória acadêmica e científica voltada para a integração entre conhecimento técnico e políticas públicas, ele é uma voz essencial no debate sobre a governança oceânica e os desafios que envolvem a relação entre o mar e a sociedade.
Nesta entrevista, Turra analisa os impactos da possível aprovação da Lei do Mar, as lacunas da legislação ambiental brasileira e os riscos de continuarmos sem uma estrutura normativa que proteja efetivamente nossa faixa costeira. Ele também discute os desafios que essa nova política pode enfrentar na prática, desde a falta de fiscalização até a influência de grupos que priorizam o lucro sobre a sustentabilidade. Com uma abordagem crítica e baseada em evidências, o especialista nos convida a refletir sobre a urgência de abandonar a lógica extrativista que historicamente moldou a relação do Brasil com seus ecossistemas marinhos e abraçar um modelo de desenvolvimento que reconheça o oceano não apenas como recurso, mas como patrimônio.
Diante de um cenário de crise ambiental global, a aprovação da Lei do Mar pode ser um marco na luta pela sustentabilidade dos oceanos—ou apenas mais uma promessa vazia no histórico de políticas ambientais ineficazes. O futuro das nossas águas está em jogo, e Alexander Turra nos ajuda a compreender o que está em disputa e o que precisamos fazer para garantir que essa lei seja, de fato, um avanço real para a proteção do oceano e das comunidades costeiras.
Acompanhe a entrevista na íntegra abaixo:
O Projeto de Lei 6969/13 está há mais de uma década parado na Câmara dos Deputados. Por que um tema tão crucial para a sustentabilidade do litoral brasileiro ficou estagnado por tanto tempo? Quem ganha com essa demora?
O projeto de lei está em tramitação na Câmara dos Deputados desde 2013, pois trata de um tema que exige um diálogo mais orgânico com diferentes setores da sociedade, incluindo a Marinha do Brasil, especialmente a Comissão Interministerial para os Recursos do Mar, o Ministério do Meio Ambiente, o Ministério da Pesca, o Ministério de Minas e Energia, entre outros envolvidos em atividades marítimas.
São questões sensíveis relacionadas a setores específicos que precisam ser harmonizadas para que a lei seja abrangente e integradora. Na verdade, ninguém ganha com essa demora; pelo contrário, perdemos muito. Se o processo fosse acelerado, as discussões poderiam ser mais céleres. No entanto, é importante que o amadurecimento do debate permita a consolidação da proposta. Atualmente, iniciativas como o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 14 (ODS 14), focado nos oceanos, e a Década das Nações Unidas da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável (2021-2030) ajudam a dar maior visibilidade ao tema.
A governança costeira do Brasil hoje é fragmentada e carece de regulamentação robusta. Sem essa lei, quais são as principais brechas e riscos para nossos ecossistemas marinhos?
A gestão costeira está relativamente bem estruturada desde 1988 e foi fortalecida com o Decreto 5302/2004, embora ainda existam lacunas significativas na implementação. No entanto, a gestão do espaço marinho é deficiente, pois não há um arcabouço legal que leve os princípios da gestão costeira para áreas marítimas além das 12 milhas náuticas, abrangendo a Zona Econômica Exclusiva e a plataforma continental.
Essa ausência legal impede a consolidação de princípios e diretrizes que poderiam fortalecer políticas existentes, como o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro, a Política Marítima Nacional e a Política Nacional para os Recursos do Mar. Além disso, instrumentos modernos, como o planejamento espacial marinho e a avaliação ambiental estratégica, não têm amparo legal no Brasil, o que dificulta uma gestão eficaz e integrada dos recursos oceânicos. A aprovação da lei permitiria o alinhamento dessas estratégias com os compromissos assumidos no ODS 14.2, que preconiza a gestão sustentável dos ecossistemas marinhos e costeiros.
O lobby de setores como o imobiliário, a pesca industrial e a indústria portuária tem sido um entrave para a aprovação da Lei do Mar? Há resistência explícita desses setores à regulamentação?
O principal desafio não é a oposição direta de setores específicos, mas sim como esses segmentos se posicionam diante de uma abordagem integrada e sistêmica. A pesca, por exemplo, foi responsável por um parecer negativo na Comissão de Pesca e Agricultura da Câmara, com argumentação semelhante à utilizada na discussão do Tratado de Biodiversidade em áreas além da jurisdição nacional, onde o setor pesqueiro buscou excluir suas atividades da regulação.
No entanto, a lei propõe uma discussão mais articulada, incluindo a pesca dentro de um contexto intersetorial. Isso é fundamental, pois a gestão atual ocorre sem estatísticas adequadas, o que pode levar ao colapso dos estoques pesqueiros. Mecanismos de sustentabilidade, como áreas marinhas protegidas, são essenciais para garantir a continuidade da pesca industrial e artesanal.
Pescadores artesanais e comunidades tradicionais serão diretamente impactados, para o bem ou para o mal, dependendo da implementação da lei. Há mecanismos suficientes para garantir que essa política não favoreça apenas grandes indústrias em detrimento dessas populações?
Sim. A abordagem ecossistêmica, um dos pilares da lei, prioriza a participação de grupos vulneráveis e a inclusão de diferentes sistemas de conhecimento, incluindo os tradicionais e locais. Além disso, busca garantir uma distribuição equitativa dos benefícios gerados pelo ambiente marinho, de forma que comunidades tradicionais não sejam prejudicadas.
O turismo costeiro é um dos principais motores da economia em várias regiões do Brasil. Se aprovada, essa lei pode colidir com interesses de empresários do setor?
O turismo depende diretamente de um ambiente de qualidade, com praias preservadas, água limpa e biodiversidade rica. Portanto, essa lei pode beneficiar o setor ao garantir a manutenção desses atributos. Enquanto alguns setores econômicos podem enfrentar desafios, o turismo tem tudo para se fortalecer com uma legislação que priorize um oceano limpo e resiliente.
O Brasil já perdeu parte significativa de recifes de corais e áreas de mangue nos últimos anos. A Lei do Mar chega tarde demais? O que ainda pode ser salvo com sua implementação?
Embora medidas já devessem ter sido tomadas há anos, a lei ainda é essencial para mitigar os danos da emergência climática. Ela permitirá integrar a política climática nacional e incentivar medidas de adaptação que aumentem a resiliência dos ecossistemas costeiros.
Há riscos de que a Lei do Mar seja desidratada na votação? O que pode ser mutilado ou removido, caso a pressão política de setores econômicos fale mais alto?
Atualmente, a lei tem uma estrutura equilibrada e os pontos mais críticos, como a pesca, já foram ajustados. Ela não impõe regulações excessivas sobre setores específicos, mas estabelece diretrizes gerais. Assim, o risco de desidratação é reduzido, especialmente porque ela busca apenas legitimar práticas que já estão em andamento no País.