Walter Salles em foto oficial do Oscar — Foto: Matt Sayles/Reprodução/Instagram e Kevin Winter/AFP
ARTIGO
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Por – Daniel Medeiros*, articulista de Neo Mondo
Passada a euforia do Oscar, quando, ao invés de fazer um carnaval, paramos o carnaval para comemorar a vitória do filme Ainda estou aqui, resta uma pergunta levemente incômoda: aprendemos algo com o filme do Walter Salles? Falou-se em orgulho, emoção, brasilidade, reconhecimento tardio mas merecido, enfim, esbaldamo-nos em esquecer por uns instantes nosso complexo de cachorro vira-latas, constitutivo de nossa alma melancólica e comemoramos a valer. Mas, e o conteúdo do filme, a referência histórica que ainda atravessa-nos como osso de galinha, entalada na garganta, o que faremos com ele?
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Num dos arroubos de nacionalismo transbordante, uma apresentadora, ao comemorar nossa vitória, despachou sem cerimônia um “chupa Argentina”, para logo a seguir ser lembrada pelo entrevistado, o ator Selton Melo, que a Argentina já ganhou dois Oscars de melhor filme estrangeiro, os dois, inclusive, com a temática da ditadura , assim como o nosso: A história oficial, de Luis Puenzo, de 1986 e, em 2010, O segredo de seus olhos, de Juan José Campanella.
E aí reside uma diferença fundamental: os argentinos não apenas produziram produtos culturais de primeira grandeza ao retratar as terríveis mazelas da sua ditadura, que durou de 1976 a 1983. Eles enfrentaram, na vida real, as consequências desse regime absurdo, processando, condenando e punindo seus responsáveis, inclusive ex-presidentes da República. Alias, outro filme argentino digno de Oscar ( concorreu, mas não levou) conta a história desse julgamento memorável: Argentina,1985, dirigido por Santiago Mitre e protagonizado pelo extraordinário Ricardo Darín, lançado em 2022, venceu prêmios no festival de Veneza, Goya, Globo de Ouro, entre outros.
Ou seja: os argentinos, como diz um ditado da minha infância, mata a cobra e mostra o pau. Nós, tristemente, comemoramos um filme que aborda um passado sombrio de morte e desaparecimento de um cidadão brasileiro pela ditadura militar pela perspectiva de quem ficou e sofreu essa perda, mas sobre a apuração desse crime e, principalmente, a punição desses culpados, nada. Protegidos pelo manto de uma anistia negociada em 1979 como a “solução possível”, os carrascos da ditadura militar nunca sofreram a perseguição da Justiça como, injustamente, perseguiram seus opositores , como Rubens Paiva, Vladimir Herzog, Manuel Fiel Filhos e tantos outros, suicidados ou desaparecidos nas masmorras do regime dos generais.
Não é de hoje que o cinema retrata esse passado sombrio. Em 1982, Roberto Faria lança “Pra frente, Brasil”, uma corajosa denúncia dos porões da ditadura, em pleno governo Figueiredo . O filme conta a história de um cidadão comum que inadvertidamente divide um táxi com um militante de esquerda e, por isso, é confundido como um “inimigo da Pátria”, e sofre as consequências desse engano: preso, torturado e desaparecido. A história se passa no período no qual o Brasil se sagra tricampeão de futebol. Jofre, o personagem interpretado pelo ator Reginaldo Faria, sobre torturas atrozes enquanto o povo vibra diante das vitórias da seleção.
Dessa vez, vibramos por um filme que ganhou destaque mundial contando histórias desse tempo inacabado. Quem sabe um dia, comemoremos como os argentinos, não somente as vitórias de nosso brilho cultural, mas também a nossa capacidade de finalmente quebrar o espelho que reflete nossa falta de coragem para enfrentar o passado de nossas terríveis falhas.
*Daniel Medeiros é professor e consultor na área de humanidades, advogado e historiador, Mestre e Doutor em Educação Histórica pela UFPR.
E-mail: danielhortenciodemedeiros@gmail.com
Instagram: @profdanielmedeiros