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Perigo, risco e dano:

Escrito por Neo Mondo | 9 de junho de 2025

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Imagem gerada por IA - Foto: Divulgação

ARTIGO

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Por – Daniel Medeiros*, articulista de Neo Mondo

Imagine que um comediante resolva montar um show de stand-up chamado “Meu Amigo Hitler”. Ele prepara o material com uma “biografia engraçada” do ditador, enfatizando suas ideias nefandas, mas com o intuito de fazer rir. No show, todos os conceitos racistas, misóginos e antidemocráticos são apresentados em gags e encenações, com gestos de braço e uniformes contendo a simbologia nazista. As pessoas pagam para assistir e sabem que o tema será esse. Ainda assim, algumas piadas mais pesadas, relacionadas ao Holocausto, causam mal-estar. Mas tudo bem, "é só piada".

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Isso é o que podemos chamar de uma situação de perigo. Perigo é a fonte ou ato que tem potencial intrínseco de causar dano — mesmo que não o cause. É o caso clássico do piso molhado. Ou da escada sem corrimão. É possível criminalizar alguém por expor os outros a uma situação de perigo?

Agora imagine que esse comediante publique o conteúdo do seu show em uma rede social, e vários cortes — inclusive as piadas mais pesadas — circulem livremente por diversos canais, desses que as pessoas visitam diariamente para passar o tempo. Os vídeos viralizam e são vistos por milhões, inclusive por crianças e por pessoas que se identificam com os alvos das piadas: judeus, negros, mulheres, pessoas com deficiência física ou cognitiva, pessoas trans etc.

Isso é o que podemos chamar de risco, que é a chance de alguém ser prejudicado pelo perigo. O risco só existe quando há exposição ao perigo. No caso da escada sem corrimão, o risco é a maior ou menor probabilidade de alguém cair. Daí a importância de o perigo ser sempre minimizado — ou o risco, alertado.

Então, alguém que sofreu na pele as situações encenadas no show — que vivenciou os horrores daquele período, perdeu entes queridos, foi submetido a necessidades físicas e psicológicas — é exposto ao conteúdo e sofre um dano. O dano é o resultado ou a consequência negativa da materialização de um risco, ou seja, o prejuízo efetivo causado pelo perigo. É a lesão, a doença, o prejuízo material ou psicológico que ocorre. No caso da escada sem corrimão, é o escorregão que provoca uma fratura na perna ou uma lesão na coluna. Algo que poderia ter sido evitado se o perigo tivesse sido minimizado ou o risco, eliminado.

O dano é algo que pode ser juridicamente ressarcido, tanto na esfera cível — com reparações materiais ao dano físico ou moral — quanto na esfera penal — com a responsabilização do causador do dano —, desde que existam tipificações legais que considerem criminosas determinadas manifestações. Por exemplo, a existência de uma lei que puna quem fizer apologia ao nazismo. Não há exclusão de punibilidade no caso de “é só uma piada” ou “assiste quem quer”. A existência do perigo e o risco do dano são os elementos que fundamentam o tipo penal. O legislador, ao criar esse crime, buscou justamente evitar ou minimizar o dano físico ou psicológico aos cidadãos.

O comediante, no entanto, não compreende como sua liberdade de expressão pode ser assim aviltada. Afinal, está apenas fazendo as pessoas rirem, divertirem-se. Que mal pode haver nisso?

Hannah Arendt fala desse mal. Não se trata de um mal que venha de uma intenção profundamente perversa ou de uma patologia sádica, mas da irreflexão, da falta de imaginação moral e da conformidade. Essa banalidade do mal revela a superficialidade de certos perpetradores que, em vez de serem monstros, são assustadoramente comuns em sua capacidade de cometer atrocidades sem culpa aparente ou sem refletir sobre as consequências de seus atos. Eles operam em uma “ausência de mente”, sem se engajar no diálogo interno que permitiria a autocrítica moral. Por isso se surpreendem quando são chamados à responsabilidade:

“Eu? Mas o que foi que eu fiz?”

Pois é.

*Daniel Medeiros é professor e consultor na área de humanidades, advogado e historiador, Mestre e Doutor em Educação Histórica pela UFPR.

E-mail: danielhortenciodemedeiros@gmail.com

Instagram: @profdanielmedeiros

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Daniel Medeiros – Foto: Divulgação

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