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POR – DR. RINALDO DE OLIVEIRA CALHEIROS*, ESPECIAL PARA NEO MONDO
Os problemas no fornecimento de energia que atingiu maior parte das cidades do Amapá afetando o abastecimento de água, a compra e armazenamento de alimentos, serviços de telefonia e internet, entre outros, afetando quase 90% da população (cerca de 765 mil pessoas) por absurdos 22 dias, pode ter sido um quase nada perto do que pode ocorrer no abastecimento público de cerca de 90% das cidades do país em relação ao abastecimento público.
Basta refletir qual seria o tamanho do distúrbio e caos se, daqui uma hora, o seu município ficasse sem o abastecimento de água de 30, 50 ou 100% da população, por 22 dias… Difícil? Então continue a ler.
Em projetos e estudos que realizamos de sustentabilidade hídrica nos municípios de Itatiba, Vinhedo e Nova Odessa no estado de São Paulo nos deparamos com a fragilidade quanto à contaminação dos mananciais de abastecimento público em relação, principalmente, a acidentes rodoviários com cargas perigosas.
Temos defendido ardorosamente no âmbito dos comitês de bacias que temos trabalhado a importância inequívoca da passagem da estratégia de ações da infraestrutura cinza para a infraestrutura verde (como atualmente acostumou-se a denominar) como caminho mais correto para o enfrentamento da escassez hídrica. Isso quer dizer, menos barragens, transposição, etc. e mais recuperação de mata de topo de morro, práticas conservacionistas na meia encosta, manejo dos elementos de ocupação e cobertura das áreas (no meio rural e urbano) e recuperação das APPs.
No entanto, para sermos honestos, tivemos que assumir que a proteção dos mananciais é ainda mais importante e urgente.
Simples… de pouco adianta aumentarmos a produção e disponibilidade hídrica para o abastecimento de uma população se, de uma hora para outra, o manancial de captação de água se tornar inutilizado por produto químico, por uma semana, dois meses, um ano ou mais.
Nas considerações desse problema, vale ressaltar duas coisas fundamentais:
- a) Na construção de uma rodovia, a eliminação das águas acumuladas na pista durante uma precipitação é realizado por meio de bueiros posicionados, evidentemente, na parte mais baixa de cada trecho de rodovia que, por sua vez, via de regra, é o ponto de passagem de um curso d’água;
- b) São raríssimas exceções pontos em que se têm estruturas de proteção, tais como caixas de recepção, de acumulo ou separação de líquidos advindos da pista de rodagem;
- c) Apesar de a lei prever “Planos de Contingenciamentos” para o caso de uma ocorrência, (que envolvem diferentes atores e estabelece diferentes atribuições), em que quase todos os municípios, por exemplo, a Defesa Civil, nunca ouviu falar. Eles praticamente se resumem às ações de estancamento e remoção do contaminante executado pela administradora da rodovia, como por exemplo, as concessionárias, por vezes eficiente.
No entanto, questões como:
- Se dois ou mais acidentes ocorrerem ao mesmo tempo, terão o adequado atendimento?
- Qual o tempo de escoamento que um contaminante leva para atingir as estruturas de despejo nos cursos d’água, e se estiver chovendo?
- Qual o número, dimensão e tipo de caixas de retenção de fluxo são necessários?
- Quem vai operacionalizá-los?
Os exemplos mostrados dessas cidades que trabalhamos ilustram as fragilidades da proteção de mananciais, referendam e consubstanciam a preocupação.
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Município de Nova Odessa
Nova Odessa é um exemplo típico da fragilidade de seus mananciais causada pela presença de uma rodovia.
Nova Odessa é um município do estado de São Paulo pertencente à região metropolitana de Campinas.
Localiza-se a uma latitude 22º 46′ 40″ Sul e a uma longitude 47º 17′ 45″ Oeste, com uma população estimada em 2019 de 60. 174 habitantes. Possui uma área de 73,8 km².
A precipitação pluviométrica é de 1.317mm/ano e a umidade relativa do ar de76%.
A potamografia indica que os principais cursos de água são: Ribeirão Quilombo, Córregos da Fazenda Foguete, da Fazenda Santo Ângelo, dos Lopes, São Francisco na divisa com Sumaré, Capoava, Palmital na divisa com Sumaré e Recanto na divisa com Americana.
Atualmente, a disponibilidade hídrica do município vem de um sistema de reservação composto por seis represas: Recanto 1, 2 e 3, Lopes 1 e 2 e a Santo Ângelo todas localizadas dentro da área do município.
O Córrego Recanto e o Dos Lopes são os principais mananciais de abastecimento público, ambos tendo suas nascentes dentro do município o que confere à Nova Odessa a rara condição de não ser dependente ou diretamente afetada hidrologicamente por outro município.
O Sistema Lopes, objeto desse estudo, tem a capacidade máxima de reservação de água bruta de quase 830 mil metros cúbicos e é responsável por mais de 40% do abastecimento publico de Nova Odessa.
Por meio da Figura 1 observa-se que praticamente todas nascentes de cabeceira que originam córregos que alimentam a Represa Lopes I estão adjacentes e sob a influência direta da Rodovia Anhanguera, mais precisamente, em torno do Posto de Pedágio.
É fato que inúmeros caminhões de carga perigosa transitam por esse trecho todo dia, o dia todo.
No leito da rodovia a distribuição das cotas desse trecho bem como as distancias de menos de 4 km entre o derramamento e o ponto mais próximo do sistema hidrológico favorecem, enormemente, o escoamento de um possível produto contaminante em direção às citadas nascentes de cabeceira e sua eminente contaminação.
Assim, visualmente, nota-se facilmente que se algum produto for despejado no leito da rodovia, o destino final será de imediato a Represa-Manancial dos Lopes I.
O risco eleva-se enormemente a partir do pressuposto que se estiver chovendo todo o processo de contaminação acima descrito é muito mais acelerado.
De acordo com o padrão de despejo de água pluvial nas rodovias do Brasil, verifica-se que a possível contaminação do manancial é facilitada pelas estruturas de condução e despejo das águas pluviais da Rodovia no Sistema Hídrico do Ribeirão dos Lopes.
Figura 1. Situação de fragilidade de Nova Odessa-SP, quanto ao risco de contaminação do manancial de abastecimento público por acidente rodoviário de cargas perigosas
Município de vinhedo
Vinhedo é um município do interior do estado de São Paulo localizado nas seguintes coordenadas geográficas: Latitude: 23° 1′ 48” Sul, Longitude: 46° 58′ 32” Oeste, pertencente à micro e mesorregião de Campinas, a 75 quilômetros da capital paulista.
Possui a área de 81.742 km² e população de 78.728 hab. (IBGE/2019).
Seu clima é considerado tropical em altitude (do tipo Cwa) com o Índice pluviométrico de 1.404 mm/ano.
A potamografia indica o Rio Capivari, de onde é tirada a maior parte da água para o consumo público, através da estação de captação e bombas recalque, Córrego Bom Jardim, Córrego da Paciência/Cachoeira, Córrego do Xoxó e Ribeirão do Tico/Moinho.
A captação para abastecimento público é de 1020 m3/h, sendo 910 m3/h de água superficial e 110 m3/h de água subterrânea.
O principal ponto de fragilidade do abastecimento de Vinhedo encontra-se no sistema de captação Tico-Moinho que é responsável por 30% do abastecimento.
Nele, em toda a extensão do curso do ribeirão, é acompanhado pela Rodovia dos Bandeirantes que, nesse trecho, apresenta enorme fluxo diário, incluindo o de transporte de carga perigosa (Figura 2).
De acordo com o padrão de despejo de água pluvial nas rodovias do Brasil, verifica-se que a possível contaminação do manancial é facilitada pelas estruturas de condução e despejo das águas pluviais da Rodovia no Sistema Hídrico do Tico/Moinho.
Assim, visualmente, nota-se facilmente que se algum produto for despejado no leito da rodovia, o destino final será de imediato o ribeirão e, conseqüentemente, Vinhedo pode ficar de uma hora para outra impossibilitada de abastecer 30% de sua população, não se sabe por quanto tempo.
O risco eleva-se enormemente a partir do pressuposto que se estiver chovendo todo o processo de contaminação acima descrito é muito mais acelerado.
Figura 2. Situação de fragilidade de Vinhedo-SP, quanto ao risco de contaminação do manancial de abastecimento público por acidente rodoviário de cargas perigosas
Município de Itatiba
O exemplo de Itatiba é o mais drástico.
Pertencente à Região Metropolitana Campinas, o município de Itatiba, localiza-se na Latitude 23º 01′ 00″ Sul e Longitude 46º 50′ 00″ Oeste, tem uma Área de 322 km2 sendo a Área Urbana de 26,12 km² e a Rural, 296,16 km².
A população estimada é de 120.858 habitantes em 2019 (IBGE).
O Índice pluviométrico do município é de 1.400 mm/ano, a umidade relativa do ar é de 72,4% e a potamografia indica o Rio Atibaia, de onde é tirada água para o consumo público da cidade, através da estação de captação e bombas recalque, o Ribeirão Jacaré, Córrego do Engenho Seco e Pinhalzinho.
Assim, o abastecimento público de água é realizado através de, praticamente, uma única captação localizada no rio Atibaia e, em função disso, no caso de um colapso nessa captação, toda a população de 121 mil hab. fica sem água.
A montante da captação o Atibaia desce paralelo e adjacente à Rodovia Dom Pedro I e, seguindo o mesmo padrão das outras, com vários afluentes cortando a rodovia assim como o seu próprio leito, que segue serpenteando e cruzando a pista gerando muitos pontos de fragilidades em relação a acidentes rodoviários com carga perigosa.
Na figura 3 destacam-se apenas três desses pontos, os mais próximos da captação.
Em todos, as características são de pontos de baixada do terreno, que, via de regra, coincide com uma passagem de um curso d’água e que, nos moldes da engenharia de estradas convencionais, foram instalados bueiros para escoamento da água pluvial acumulada na pista de rodagem.
Configura-se, portanto o clássico potencial risco de contaminação da água de abastecimento público causada pelo escorrimento de um produto químico, topograficamente direcionado ao bueiro, despejado diretamente no curso d’água, podendo inviabilizar a captação, por não se sabe por quanto tempo.
Figura 3. Situação de fragilidade de Itatiba-SP, quanto ao risco de contaminação do manancial de abastecimento público por acidente rodoviário de cargas perigosas
CONCLUSÕES
- Além da escassez hídrica temos que resolver de forma efetiva a proteção dos mananciais de abastecimento público se não quisermos que a Tragédia Anunciada aconteça no nosso município;
- São pouquíssimos municípios, companhias de abastecimento público, Agencias Reguladoras, ONGs ligadas aos recursos hídricos e administradoras de rodovias que tem tido a capacidade de visualizar, atentar para o problema e/ou que tem deixado de negligenciá-lo.
- As ações têm que serem tomadas de forma preventiva porque, dada a magnitude de perturbação social causada por um colapso no abastecimento público total ou parcial, essa questão é uma das poucas que não aceita desqualificação do “nunca aconteceu”.
- Elaboramos para Vinhedo e Nova Odessa os respectivos Planos De Proteção Aos Mananciais que, em Vinhedo está sendo estabelecido por lei. Esses municípios devem estar dentre os poucos com esse planejamento estruturado… esperamos que implantem.
Vai aqui a nossa contribuição esperando que isso mude.
*Dr. Rinaldo de Oliveira Calheiros – Especialista em Produção de Água, Consultor da AYTY – Tecnologias Ambientais.
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