Daniel Medeiros – “A escola é o lugar onde olhamos com interesse para o outro” – Imagem: Divulgação
ARTIGO
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Por – Daniel Medeiros*, articulista de Neo Mondo
Eu era criança, estava no primeiro ano, a professora Adla precisou sair da sala e me colocou na frente da turma, de costas para o quadro, com uma determinação: se alguém se levantar, você vai me avisar quando eu voltar. A professora sempre agia assim e essa ordem não era aleatória ou autoritária. Havia sido fruto de longas conversas na roda, na qual a professora falava da importância de nos responsabilizarmos por nossos atos diante dos outros e da importância do grupo , mais do que as vontades individuais. Com ela ouvi uma das frases que balizou minha vida até aqui: o todo precisa ser maior do que a soma das partes.
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Turma em silêncio, imóvel. Eu, tímido e apavorado, perguntava-me porque ela havia escolhido a mim para cumprir aquela missão naquele dia. Enquanto tentava decifrar esse enigma , uma aluna levantou-se e veio em minha direção. Disse que queria me dar uma coisa. Era um pequeno boneco azul, desses que acompanhavam algum produto cheio de açúcar e gorduras insaturadas. Peguei o boneco. Ela voltou e sentou-se. Pouco depois a professora retornou e me perguntou: Daniel, alguém saiu da carteira enquanto eu estava fora? Esse foi, com certeza, o primeiro momento trágico da minha existência. Mas não passou pela minha cabeça, naquele momento, contrariar a professora e violar as regras sobre as quais todos havíamos participado e concordado em respeitar. E, com isso, perdi a primeira amiga que poderia ter tido na vida.
Hoje, acompanho escolas e converso com muitos professores. A reclamação é uma só: não é possível mais controlar os jovens estudantes. Como faze-los ouvir, como faze-los atender às solicitações, como faze-los respeitar os colegas, como faze-los respeitar os próprios professores? Pergunto-me em que momento a escola perdeu a capacidade de definir os combinados, de construir o contrato social e de manter o funcionamento razoável da comunidade escolar voltado para o fim comum do aprendizado, socialização e formação para a cidadania?
Recordo-me de um outro momento, já bem mais recente. A mãe levou a filha para escola em um dia frio e, no seu corre-corre de afazeres, esqueceu de pegar a japona da escola, necessariamente da cor preta. Colocou um casaco rosa que estava no carro e foi, decidida, entregar a menina. Na porta, a funcionária disse: ela não está com o uniforme da escola. A mãe, polidamente, redarguiu: sim, eu sei, mas eu esqueci e no carro só havia esse casaco. Foi só hoje. A funcionária, calmamente, repetiu: a aluna está sem o o uniforme da escola. A mãe, já um pouco alterada, disse: então você quer que ela passe frio? E a funcionária encerrou a conversa: não. Quero que ela esteja com o uniforme da escola. Naquele dia, a menina não assistiu aula e a mãe nunca mais esqueceu o uniforme dela.
Quando que isso deixou de ser possível?
As autoridades, durante o governo extremista de Jair Bolsonaro, tiraram da cartola a ideia absurda de colocar militares dentro das escolas públicas para disciplina-las e a ideia espalhou-se por vários Estados (Lógico que nenhuma escola privada aderiu a ideia estapafúrdia). Alguns governos, inclusive, vangloriam-se de terem o maior número dessas escolas absurdas. Militares dentro da escola, disciplina sem construção de diálogo, obediência sem compreensão da razão das regras, regressão da condição de cidadão para a condição de súdito. Como há um efeito, que é o da retração pelo medo, as famílias, aliviadas, aplaudem. Não reparam que cada escola com militares dentro é um tapa na cara delas próprias, e também dos gestores escolares, uma declaração explícita de suas incompetências em construírem um ambiente no qual seja possível criar e manter regras de convívio civilizado e dialogado. Como se as crianças e jovens fossem delinquentes, e então chamam a polícia. O que pensaria a professora Adla desse descalabro? Educada e cortês, possivelmente, só abaixaria os olhos e balançaria discretamente a cabeça. Ela que, desde o primeiro momento, olhava os alunos nos olhos, chamava-os pelo nome, perguntava se estava bem cada um de nós fazermos esta ou aquela tarefa. Ela que resolveu o problema de irmos ao banheiro de maneira simples e direta: na porta da sala colocou uma plaquinha. Quem quisesse ir ao banheiro, levantava , pegava a plaquinha e saia. Enquanto a plaquinha estivesse ausente, outro aluno não poderia ir. Se alguém demorasse muito, a própria turma reclamava dele ou dela, cobrando solidariedade coletiva. E a professora Adla olhava tudo aquilo com seu olhar firme mas sereno, calmo mas decidido. Uma mestra.
Hoje, o que podemos fazer para retomar o caminho perdido? Culpabilizar os alunos? Reclamar ad aeternum das famílias? Ir para os portões dos quartéis? A primeira resposta para essa complexa situação, que vem pondo em risco a capacidade de a escola produzir aprendizado adequado, urgente e necessário para a próxima geração, é compreender. Compreender por que o contrato social intergeracional funciona cada vez menos, cada vez pior. E compreender exige observar e analisar, sem julgamentos prévios e sentenças definitivas. Ou seja, precisamos todos e particularmente nós, pais e educadores, exercer a mais importante das funções que nos fez chegar até aqui como humanos: olhar com interesse para o outro.
*Daniel Medeiros é professor e consultor na área de humanidades, advogado e historiador, Mestre e Doutor em Educação Histórica pela UFPR.
E-mail: [email protected]
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