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POR – FRINEIA REZENDE
Não, esta não é uma campanha publicitária.
Mas, décadas atrás, em uma campanha publicitária de uma marca de embalagem ¨longa-vida¨, uma garotinha tomando um copo de leite dizia: “- porque o leite vem da caixinha”.
Junto com o leite, vem a ideia de todos os outros artigos alimentares. Muito provavelmente, as crianças (talvez até adolescentes e alguns adultos) das áreas urbanas desconhecem a origem daquilo que se come – porque para estas, tudo o que se come vem do mercado. E se vem do mercado, não há o risco destes alimentos desaparecerem em poucos anos. E menos ainda, a ideia da relação entre esses alimentos, a perda da biodiversidade e as mudanças climáticas.
Mas vamos ao churrasquinho. Começando pela picanha…
Há cerca de 10 mil anos, o ser humano domesticou as duas espécies ancestrais do gado bovino como o conhecemos hoje – o Bos taurus; originário do Oriente Médio, numa região conhecida como Crescente Fértil, e o Bos indicus; que como diz o nome, originário do Vale do Indo, atual Índia e Paquistão.
Da primeira espécie derivou-se o Angus e o Holandês, de clima temperado. Já da segunda, o Nelore e o Guzerá; muito comuns no Brasil – justamente por terem origem tropical, sendo que o Nelore representa cerca de 80% do rebanho de corte brasileiro.
Estima-se que, quase 20% do território nacional é destinado a pastagens, cerca de 160 milhões de hectares, sendo o Brasil o terceiro maior consumidor mundial de carne bovina, tendo sido consumidos uma média de 24,4 kg por pessoa em 2021.
Infelizmente, principalmente devido às mudanças climáticas – que causam secas extremas, cada vez mais prolongadas, frequentes e severas – a produção de carne bovina pode cair 25% até 2050 (você pode até pensar que esta taxa não é exatamente significativa, mas com a queda na produção, o produto se torna mais valioso – e caro – no mercado. E aí já viu, né?).
Eventos climáticos extremos, como o aumento severo nas temperaturas, afetam o crescimento das pastagens, reduzindo a disponibilidade de alimento para o gado e dificultando a manutenção dos níveis atuais de produção.
O Governo celebrou a diminuição do desmatamento em 2024, mas estamos longe de uma resolução para o problema. Para piorar um pouquinho esse cenário, o aquecimento global facilita a proliferação de vetores e patógenos que afetam o gado – e as pessoas.
Ademais, a pecuária desempenha um papel significativo nas emissões de gases de efeito estufa (GEE), sendo responsável por aproximadamente 14,5% das emissões globais desses gases. O gado aumenta os índices relacionados às mudanças climáticas por meio da emissão de dióxido de carbono (CO₂), metano (CH₄) e óxido nitroso (N₂O). Para além disso, a conversão de floresta em área de pasto (para aumentar a área disponível para o gado) é uma das principais causas do desmatamento, especialmente na Amazônia, Cerrado e Pantanal.
Lembrando que o desmatamento contribui para as emissões de CO2 devido à queima e decomposição da vegetação nativa. No Brasil, só em 2019, o desmatamento foi responsável por 44% das emissões de GEE, emitindo 968 milhões de toneladas de CO₂ na atmosfera. Para se ter uma ideia, são necessários 193,6 milhões de hectares de floresta madura protegida para compensar* esse total de emissões – isso equivale a quase 194 milhões de campos de futebol!!! Ou ao tamanho quase total do México!!! Exatamente, o México… que tem um território de 197 milhões de hectares. E cerca de 2 vezes o Estado do Mato Grosso (90 M ha).
Na Amazônia, São Felix do Xingu (PA) é um exemplo clássico, já que é o município com o maior rebanho bovino do país e, por vários anos, recordista em desmatamento. Mas, em 2023 quem registrou a maior área desmatada foi Altamira, também no Pará, posicionando-se como o município com a maior área desmatada, no ano, na Amazônia, com 23.449 ha de desmatamento. Isso é praticamente equivalente à cidade de Resende (RJ).
Lembra-se do número 160 milhões de hectares destinados à pastagem para o gado? Pois é, destes, 28 milhões estão totalmente degradados.
Para além do problema relacionado às mudanças climáticas e disponibilidade hídrica, temos a perda da biodiversidade. A Amazônia abriga cerca de 10% de toda a biodiversidade do planeta. Ou seja, para cada hectare desmatado, perdem-se habitats e coloca-se inúmeras espécies em risco de extinção – inclusive inúmeros polinizadores (falaremos destes logo, logo).
Estima-se que 95% das espécies da Amazônia foram afetadas por incêndios florestais e desmatamento nos últimos 20 anos. Ou seja, uma das maiores perdas para a nação foram as inúmeras espécies que podem ter desaparecido sem nem mesmo termos conhecimento delas.
Para piorar um pouquinho, aliado ao desmatamento, tem-se os incêndios criminosos, que não só levam a impactos ambientais severos – e de saúde – mas também à perda da biodiversidade.
Em 2024 (até setembro), só a Amazônia perdeu cerca 11 milhões de hectares para o fogo – equivalente a 75% do Estado do Ceará; já o Cerrado, 8,4 milhões – basicamente um pouco mais que toda a Áustria; e por fim, o Pantanal, 648 mil hectares – cerca de quatro (4) vezes o tamanho do município de São Paulo.
No total, perdemos para o fogo o equivalente ao Senegal inteiro e emitiu-se cerca de 501 Mt de CO2. Nem a Argentina emitiu tanto CO2 – que em 2021 foi responsável pela emissão de 417 Mt de CO2. Não sei você, mas eu acho isso um acinte! Para compensar* essa emissão toda, precisamos de uma área do tamanho do Egito em floresta madura.
E ainda, a perda de biodiversidade não foi nem mesmo estimada, em função da complexidade dos ecossistemas nesses biomas – e pela falta de levantamentos prévios. De qualquer forma, além de árvores imensas e centenárias, imagens de cervos-do-pantanal, macacos e onças esturricados pelo fogo já fazem parte do imaginário do povo brasileiro quando chegam as notícias sobre esses incêndios.
Outro tema importante sobre a pecuária bovina é o fato desta requerer grandes quantidades de água, tanto para os animais, quanto para o cultivo das pastagens e grãos (como a soja) usados na ração. E a seca, obviamente, também leva à escassez de água, o que influencia a disponibilidade hídrica – não só para o gado, mas outras espécies de animais e, claro, para as pessoas.
A seca atinge florestas e rios. Em 2024 trechos de rios pantaneiros e amazônidas atingiram os menores níveis desde que se registram esses dados. Você deve se lembrar das imagens dos botos-cor-de-rosa mortos nos rios secos em 2023 e em 2024 a história da onça-pintada que percorreu cerca de 100 km, com as patas queimada e fugindo do fogo até ser resgatada no município de Miranda (MS).
Regiões como o Cerrado e partes da Amazônia já enfrentam desafios de disponibilidade hídrica anuais, e as mudanças climáticas já intensificam cenários de escassez cada vez mais intensos, o que torna a produção de carne insustentável em algumas áreas. Na média, a pegada hídrica da produção de carne é de cerca 15.000 litros para cada quilo de carne. É muito, não?
A produção de carne bovina incrementa as taxas de emissões ligadas às mudanças climáticas, que por sua vez diminuem a produtividade do gado. A falta de uso do solo adequado, leva à abertura de novas áreas para pastagem (desmatamento), que por sua vez contribui para as mudanças climáticas que por sua vez, junto com o desmatamento, levam ao aumento da indisponibilidade hídrica, que por sua vez diminui a qualidade da pastagem que diminui a produtividade … Então, o que se vê é um círculo vicioso. Para além de tudo isso, ainda há o efeito colateral desastroso da perda da biodiversidade que também afeta a produtividade.
Mas isso tem jeito? Como pessoas não-vegetarias poderão continuar a comer churrasco?
Sim! Há várias soluções. É verdade que o ideal seria nem comer carne ou reduzir bastante o consumo. Mas se fortalecermos a implementação de soluções em toda a cadeia da pecuária, o impacto negativo seria proporcionalmente menor. A ILPF (Integração Lavoura-Pecuária-Floresta), além de diminuir a necessidade de conversão de novas áreas (floresta) em pasto, aumenta a produtividade, além da disponibilidade hídrica. Outro exemplo é melhorar o manejo das pastagens – já que um pasto pobre leva o produtor a desmatar. E ainda há outras soluções.
Para além disso, o desmatamento desregula o ciclo hidrológico e impacta não somente a biodiversidade dentro das florestas, mas também toda a população – inclusive de áreas distantes já que impede a formação dos famosos rios voadores1.
Mas para se ter picanha, precisa-se colocar água e, para além do pasto, ração nos coxos. Sobre o pasto e a água, já sabemos qual o problema e como solucionar ou, pelo menos diminuir o impacto: restaurar o que já foi destruído, evitar novas conversões e melhorar o manejo do pasto. Mas e a ração?
O churrasquinho não está pronto ainda. Semana que vem a gente continua nesse fio para falar sobre a ração para o gado e dos acompanhamentos nas cenas dos próximos capítulos.